quinta-feira, março 15, 2007

A Lisboa dos bairros históricos

- Graça, Alfama e Castelo vistas por dentro

Com a devida vénia, transcreve-se um artigo escrito pela estudante de Jornalismo, Vanessa Feiteiro, da FCSH no Fora de Linha

O eléctrico 28 cobre o extenso percurso desde a Graça até aos Prazeres e é um dos mais emblemáticos da rede de eléctricos da Carris de Lisboa, encantando os mais variados turistas. Mas por trás das curvas apertadas e ruelas sinuosas que desenham os bairros históricos por onde passa, existe uma outra Lisboa.

Terça-feira, dez da manhã. Tiago Abreu, de 18 anos, espera o 28, perto do miradouro de Santa Luzia, em Alfama, onde mora. Nas ruas estreitas e íngremes respira-se o ar de outros tempos, o sol faz resplandecer as casas vestidas de azulejos ou pintadas de carmin, verde menta, amarelo canário, nas varandas há vasos com flores e roupa estendida a secar.

Apesar do seu pulsar já se encontrar noutras paragens, parece que é aqui que a alma da cidade habita. O repentino estardalhaço de campainhas avisa Tiago que está na hora de ir para a escola. “Vou sempre à pendura”, conta o jovem de calças largas, dois piercings no lábio e cabelo tão espetado que parece fazer publicidade a uma marca de gel.

Estuda na Secundária Gil Vicente, na Graça, mas hoje sai da “pendura” do eléctrico uma paragem antes: na Feira da Ladra. “Vou ver se encontro um CD dos Sex Pistols que há ‘bué’ quero comprar”, conta-nos entusiasmado. Com o som “Anarchy in the UK” a tocar no seu discman, sobe a rua que liga a Igreja de Santa Engrácia ao Largo da Graça. Pára a meio da subida e, apontando para um edifício no outro lado da rua, diz “ aquela ‘cena’ é um sítio brutal, já lá fui a concertos mesmo ‘bacanos’. Refere-se à Voz do Operário.

Mais do que um sítio para concertos, a Voz do Operário é uma instituição centenária com largas tradições na educação. Fundada em 1883 por um grupo de operários da indústria dos Tabacos, conseguiu sobreviver à ditadura, mas a sua acção ficou muito diminuída. Só recuperou a tradição humanista e universalista após o 25 de Abril, altura em que os espaços se reabrem às manifestações políticas, culturais e artísticas.

Tiago Abreu chega ao Largo da Graça antes do próprio eléctrico que lhe deu boleia. Isto porque um carro estacionado na linha impedia o 28 de avançar. Trata-se de um problema estrutural, que só terá solução quando o estacionamento for proibido em todas as ruas por onde passa o eléctrico, pelo menos nas mais estreitas. Tiago ri-se da situação e avisa: “uma pessoa chega mais depressa a pé”.

Perto da secundária Gil Vicente existe um pequeno jardim público. É aí que Hermínio Pereira, 72 anos, e Vasco Santos, 75, passam os dias. Entre um cigarro e um jogo de sueca falam de uma Lisboa de outros tempos. “Isto antigamente não era assim”, assevera Hermínio Pereira, “há cada vez mais carros, qualquer dia já nem há espaço para andarmos na rua”.

Aida Teixeira, de 78 anos, regressa ao bairro depois de ter visitado a campa do marido. Mais do que a tristeza, é o cansaço desta rotina semanal que pesa no seu rosto. Ao descer do 28, sabe que ainda tem 10 minutos para descansar no miradouro da Graça, antes dos sinos a chamarem para a missa das 18 horas. Senta-se num dos banquinhos e o seu olhar perde-se entre as colinas e o Tejo.

São seis da tarde. Os sinos tocam. Joana Gonçalves desce apressada a rua que liga o Castelo de S. Jorge ao Chapitô. Enquanto relê as falas para a aula de teatro, explica que morar no berço da cidade “é mais um problema do que um privilégio”.

A acessibilidade ao Castelo é um problema sem solução à vista. Joana Gonçalves defende que “se deveria lançar um concurso público de ideias para o acesso ao Castelo, de forma a beneficiar os moradores e não apenas os turistas e visitantes”.

Abrigo de encontros fortuitos, namoros, passeios familiares, visitas de estudo, festas e até jantares empresariais, o Castelo de S. Jorge é uma varanda privilegiada para uma Lisboa mítica e antiga. Apesar de, agora, ser apenas para os “alfacinhas”, já que quem não mora na capital tem de pagar 3 euros para se deleitar com o recorte paisagístico que o Castelo oferece.

A missa acabou. Aida Teixeira dirige-se para casa onde a única companhia que a espera é a do seu gato. Enquanto abre a porta do seu antigo e degradado prédio , queixa-se que “aqueles é que estão bem”, apontando para o condomínio de luxo “Villa da Graça”, situado a apenas dois prédios do seu.

Um condomínio fechado rouba espaço aos moradores e ao convívio e o centro da cidade não parece ser o melhor lugar para a sua existência. Com um brilhozinho nos olhos, fala do sonho de ter um espaço de lazer para estar com as amigas à tarde, de ter uma creche perto de casa para ir buscar a neta , Ritinha e, depois, ir com ela brincar para um parque infantil “aqui ao pé”.

São exemplos de estruturas que faltam no bairro. Com muita dificuldade, Aida Teixeira sobe as escadas do prédio sem elevador e queixa-se que “deviam era fazer coisas para nós que moramos aqui há mais de 40 anos”.

São dez da noite. Joana Gonçalves sai da aula de teatro e dirige-se para a sua casa situada na Costa do Castelo. Aí parece que Lisboa escorre lentamente até ao Tejo. Há uma neblina tardia.

Lá em baixo, a ponte parece feita de corda, as praças lembram tabuleiros de xadrez e os telhados pombalinos, avermelhados, agarram-se com uma mão. O rio desfaz a rota dos cacilheiros e quase acreditamos que não existe ninguém nas ruas.

Estamos suspensos entre o passado e o agora. A vista do Castelo de S. Jorge faz-nos questionar a real dimensão da cidade. E do tempo: ainda se sente o galope dos cavalos, a passada dos romanos, o engenho dos muçulmanos, a ânsia dos cruzados. Respira-se a conquista de D. Afonso Henriques, em 1147, quando arrancou aos mouros a chave de Lisboa e um caminho para o mundo.


- Vanessa Feiteiro

1 comentário:

Anónimo disse...

Foi com um enorme orgulho que vi transcrito este texto para o vosso blog. Imagine-se que só hoje é que soube deste facto. Obrigada pelo elogio, reli agora o texto e quase que consegui recuar no tempo, quase que conseguir estar de novo na FCSH e senti, cá dentro, umas saudades dessa Lisboa "que eu amo".
Vanessa Feiteiro