domingo, março 08, 2009

Lisboa pitoresca 2

Eça agarra-me, se não, caio!

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Inauguração do Monumento a Eça de Queirós

A gente do Eça

No primeiro dia da semana, os amigos d'Eça de Queiroz foram inaugurar o monumento, n'uma romagem de saudade e de justiça, pela tarde parda, levemente abafada de novembro.

E esse busto forte, de um cunho esmagador, onde ha uma nota intensa e onde ha uma psychologia a revelar-se nos ties nervosos das faces, nas rugas sinuosas da testa, foi entregue á Verdade e foi entregue ao municipio: á Verdade de seios turgidos e que, meia pudica no veu diaphano da phantasia, se quarteia, com os labios para os labios d'elle, com os olhos para os seus olhos, de braços abertos, n'um arroubo, a prometter-lhe a alma religiosamente guardada na sua carne, que parece viver, um poucochinho espiritual, um poucochinho gaiata; ao municipio, que no final do seu consulado fará vinte sessões para ajardinar o largo do Quintella e outras tantas para mandar pintar a barra de ferro que orla o recinto.

Isso mesmo me deu a entender o sr. conde de Gouvarinho, que está na opposição, quando viu chegar o sr. conde de Ribamar cofiando o bigode grisalho, solemne, com os seus oculos de ouro e com os seus conhecimentos de Historia e de Politica. O conselheiro Accacio descobriu ante elle a calva luzidia, vasta e polida, um poucochinho amolgada no alto, e exclamou, de mão espalmada:
«Manifestações desta natureza honram quem deu licença para ellas se fazerem, honram quem a ellas assiste.»

A custo, o sr. conselheiro Accacio conteve um viva ao ministerio no seu lenço de seda da India, onde o abafou com um espirro, ao mesmo tempo que exclamava:
- Grande talento! Grande talento! Não se póde dizer que tivesse aquelle estylo do nosso Herculano, ou do nosso Garrett, mas ... Viva o ministerio!
Emfim, Accacio, ligeiramente córado, mais alliviadinho, serenou.

E os amigos do grande escriptor, belos espirítos, como o d'elle, almas que o amaram, homens de vasta illustração, artistas que o estremeceram e que o respeitam, deviam evocar a galeria das suas figuras - A gente do Eça - que ali estava a manisfestar-se, burocratica e em posse, com o Gouvarinho e com o Ribamar.

N'um angulo, ao lado do primo Basilio, que trazia luvas gris perle e um côco novo da capelaria londrina, estava o padre Amaro a cubiçar os braços ternos da figura, recordando os da Ameliasinha, emquanto o outro se lembrava da Luiza, ao vel-a fria no seu marmore como uma linda mulher insensivel na pedra.

E o Basilio lastimava em mente não ter trazido a Alphonsine, emquanto o visconde Reynaldo, n'um paletot largo, calçado de verniz em botas de presilhas marcadas pelo distico de um estabelecimento de Regent Street, torcia a venta e declarava:
- Shocking ... O' Bazilio, estás um lamecha ... Cousas portuguezas! ... O' menino, não é feiasinha! Mas portugueza! ... Ora levanta-lhe a tunica. Aposto que usa ligas de algodão! Vamos fazer as malas!

Ao lado, o Palma Cavallão teve um riso grosso ao sentir que s. ex.ª talvez preferisse as hespanholas, sentiu uma vaidadesinha e tomou um apontamento para a Corneta do Diabo.

O Thomaz de Alencar, de face escaveirada, todo calvo na frente, os anneis fôfos e romanticos da grenha secca surdindo de sob as abas do chapeu velho, declamava:
- O naturalismo d'essa estatua. Puf ... Que cousa! ... - e batendo no hombro do Carlos da Maia, que estava triste, disse-lhe:
- Meu rapaz ... Por esta luz que nos alumia, antes queria outra cousa ... Nada mais que um ramo de saudades, só, simples, symbolico ... Anh? Que dizes meu rapaz?
Levou a mão á grenha e rosnou uns versos a Elvira. Por fim, acachapado, condescendente, disse:
- Emfim, tudo é arte!. Não vou achando feio o tal naturalismo ... O' filho, tens ahi um charuto?! ...

Assim foi decorrendo a cerimonia no resoar das phrases sentidas e de amizade, assim foi passando a hora em que os grandes amigos d'Eça de Queiroz inauguraram o monumento diante dos personagens que o grande escriptor creou, deante de todos elles, que ainda ali estavam com a mesma vida e com o mesmo cunho, eguaes e flagrantes: o Eusebiosinho, muito encolhido e com um furunculo, o Palma Cavallão de pança saliente e de lapis em punho, o chapeu para traz, na tarde suja d'esse começo de semana, tirando apontamentos.

O Basilio suspirou, tomou o braço ao visconde Reynaldo, mal fixou o conselheiro Accacio, que ia para elle de mão estendida, a clamar:
- V. ex.ª de volta ...! Oh! E como vão essas Paris, essas Londres ... Afastou-se desdenhoso e com o visconde para irem tomar um bock ao Central.

Por fim tudo debandou, quando o ultimo amigo do escriptor, repassado de tristeza e sentindo ao mesmo tempo um consolo diante d'essa obra de justiça, se foi a recordar um passado de camaradagem.

Eça de Queiroz ficou-se, olhado pela Verdade, no seu manto transparente, ali a meio da rua, como a esfurancar as almas para as trasladar ao livro ironico, de face arrepanhada, esperando a sua primeira noite de gloria na praça publica, ali no largo do Quintella, onde por deshoras vagueiam vultos suspeitos e onde chegam os palavrões dos cocheiros, por onde passam os Basilios e os Reynaldos, após as perfídias, por onde passam os Amaros com os homens conhecedores da Historia e da Politíca, condemnando a revolta.

Hão de parar por vezes em frente do monumento e um senhor de Ribamar exclamará:
- Vejam esta prosperidade!
Lá em cima param as tipoias, passam lestos os americanos, inglezas de bandós lisos galgam a escada da Arcada de Londres, e de cima, do Camões, vem o zumbir da turba que procura pão, surgindo dos bairros do crime e do vicío.
Todos os dias, mulhersinhas magrisellas, cahidas, de peitos achatados, tossicando, olheirentas, com crianças pela mão, uns petizes famelicos, de olhos pisados, hão de passar diante da estatua para a Assistencia Nacional.

O senhor conde de Ribamar ha de repisar:
- Vejam que prosperidade! ...

Eça de Queiroz, como outr'ora o João da Ega, assestando o monoculo, dirá ao vel-os buscando salvação:
- Já não merece a pena correr na vida! ...

Ali ficará para sempre o supremo artista, vendo a obra forte de verdade nas misérias da rua, sob o manto diaphano das propseridades, que são a phantasia; ali ficará ironico e critico como em vida.

E um dia o conselheiro Accacio ha de escrever o seu panegyrico, com a mira na gran cruz de S. Thiago, e quem sabe se com a ambição justa de uma cadeira na Academia.

- Rocha Martins, em Chronica, na Illustração Portugueza (Nov. de 1903)

2 comentários:

Diogo Moura disse...

Só falta é saber quando é que a CML devolve a verdadeira estátua de Eça de Queiróz ao Largo Barão de Quintela (sim, a original está desmembrada nos jardins do Museu da Cidade, enquanto a que se encontra no Largo é uma réplica...)

MP disse...

Eh eh eh, também para a original estar exposta ao vandalismo dos graffiti, mais vale estar no Museu para estar protegida e poder ser contemplada, sem as atrocidades perpretadas por esses lunáticos!