quarta-feira, outubro 20, 2010

Os culpados escapam sempre

O Orçamento, aquilo que dele conhecemos, impõe-nos a obediência total a uma tremenda iniquidade. Falemos de servidão, afinal o que as circunstâncias favorecem: não podemos desobedecer porque o imposto de submissão, engendrado pelo Governo PS, abate-se sobre nós, e responsabiliza-nos sob a fórmula de "o interesse nacional". Expressão cuja lógica é a de comprometer toda a gente menos aqueles que, rigorosamente, são os culpados. O clamor de protestos que se escuta por aqui e por ali conduz-nos ao carácter relacional do poder. E induz-nos a reflectir sobre a sua natureza. No caso português, sobre a monstruosidade das suas aberrações.

A crise do sistema prolonga a argumentação deste Governo que não soube prever as condições históricas, nas quais o capitalismo se movia, e oculta as suas derivas e as suas incompetências com uma retórica "balsâmica". Ouve-se o primeiro-ministro e não se consegue descortinar onde está o "normal" e o "patológico". Mas também não distinguimos os objectivos de Passos Coelho, com o carácter das suas ofensivas sociais e a qualidade da democracia que diz defender. Que raio de democracia é esta, a de Passos, e aquela sob cujo paradigma temos vivido?

A encruzilhada na qual o País convenciona a sua perplexidade é bem pior do que a questão económico-financeira. É a ausência de alternativa. O Governo estrebucha. O PSD não serve. O rotativismo resultou neste imbróglio onde inexiste a racionalidade política, e as excrescências do improviso e as técnicas impositivas (para não dizer: repressivas) se sobrepõem aos próprios conceitos de democracia. Quando vinte por cento da população vivem abaixo do limiar da pobreza, e cerca de 600 mil portugueses estão desempregados; quando a nossa mocidade vai embora e licenciados ganham a vida nas caixas registadoras de supermercados, está estabelecida uma desapropriação social horrorosa. Goste-se ou não, foi-nos imposta uma forma de sociedade totalitária, sob a capa de "democracia de superfície". Nem o PS nem o PSD contrariaram a perda de valores e de padrões, comum à hierarquização do dinheiro que a nova ordem económica incutiu e estimulou.

As nossas sociedades actuais ainda dispõem das virtualidades, intrínsecas à ética republicana e à moral democrática? Em Portugal, muitos que beneficiaram da ruptura do 25 de Abril não são aqueles que pela liberdade se bateram e inúmeros perigos correram. Não há um destes, um sequer, que tenha três e quatro reformas; ou que receba, mensalmente, 3500 escudos (moeda antiga) de pensão vitalícia e actualizada, por seis meses de funções numa poderosa instituição bancária pública.

Vê-se a dificuldade da questão. Mas alguma coisa tem de ser feita. Os bárbaros estão às portas de Bizâncio.




In Diário de Notícias

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