segunda-feira, fevereiro 21, 2011

Trânsito congestionado logo pela manhã

«Todo dia ela faz tudo sempre igual: me sacode às seis horas da manhã…». Assim começa uma célebre canção de Chico Buarque, e se é verdade que a TV jamais emitiu semelhante coisa manhã adentro, o refrão não podia estar mais de acordo com as notícias de trânsito com que as várias estações televisivas nacionais costumam massacrar os telespectadores mal estes acabam de lavar os olhos e começaram a deglutir o seu pequeno almoço.

Em redor da capital, é quase sempre a mesma coisa: A1, A2, A5, IC19 (e como os locutores gostam destas siglas) e acessos à ponte, invariavelmente, de “trânsito congestionado”; alguns choques, algumas “pannes”, aqui e ali, e o programa segue dentro de momentos.

Assim tem seguido e segue. É inconcebível como passados 37 anos sobre uma revolução cujo principal objectivo era o de fazer com que Portugal recuperasse do atraso face à Europa ocidental, continuemos a aceitar que meio milhão de automóveis, mais coisa menos coisa, continue a entrar, saturar, conspurcar e enervar Lisboa todos os dias logo pela manhã.

Como é possível que de então para cá ninguém tenha conseguido criar uma rede capaz de transporte público? Não falo em Lisboa, que já havia, há e até nem é má, mas em volta da capital, de modo a que as pessoas que aí residam possam, as que assim o queiram, vir trabalhar para Lisboa sem trazerem o automóvel, poupando e relaxando q.b. Como é possível que se tenha desperdiçado em alcatrão o chorudo fundo vindo de Bruxelas, e que continuemos na estaca zero no que toca a metro ligeiro de superfície em rede, que possibilite ligar de forma rápida, cómoda e, sobretudo, fiável, o centro de Lisboa com os concelhos de Cascais, Sintra, Amadora, Odivelas, Loures e “outra banda”?

Não chega dizer que há comboio, por ex., entre Cais do Sodré e Cascais, Rossio e Sintra, se depois não há como mobilizar os habitantes desses concelhos a abdicarem do carro e apanharem o comboio para Lisboa, porque não há autocarros eficazes, interfaces de verdade, parques de estacionamento junto a estes últimos, etc., etc. Como é possível uma enormidade chamada SATU, serve quem e para quê?

Curioso é que ninguém assume responsabilidades pelo cavar sucessivo do fosso do atraso. Que andam a fazer os autarcas? Autoridade Metropolitana de Transportes? E os sucessivos MOPTC, quando vão de férias nunca andam de olhos abertos para ver como é que fazem lá fora, aqueles com quem queremos equiparar-nos desde há meio século, pelo menos? Que adianta andar a falar em “mobilidade suave”, terminais eléctricos para automóveis, corredores BUS e outros lugares-comuns se no essencial continuamos na mesma: automóveis+alcatrão+estacionamento no centro+vias rápidas para introduzir (+devagar) aqueles neste último. «Cotidiano», mesmo, diria Buarque.



In Jornal de Notícias (17.2.2011)

3 comentários:

Anónimo disse...

Ah, mas a questão é que esta gente acha isso moderno. Se não houvesse trânsito nem congestionamentos, era a tristeza. o bulício, dizem, é sinónimo de desenvolvimento, assim género a mutilação das duplas consoantes. É tudo motivo de orgulho.

Anónimo disse...

Para quando portagens para os veículos que entrem na cidade com apenas um ocupante? É exasperante apanhar um autocarro dos arredores e ficar sempre encravado na A5! Percurso normal seriam 25 minutos mas demoro o dobro até ao Marquês de Pombal!

Anónimo disse...

Se os malditos automobilistas fizessem isso que sugerem, a rede de transportes públicos revelar-se-ia aquilo que é: completamente incapaz de promover a expedita e confortável deslocação dos seus clientes.

Não os culpem, aos malditos automobilistas, por décadas de atrocidades urbanísticas, absolutamente desenfreadas e impunes, que criaram uma Grande Lisboa (e não só) absolutamente irrecuperável sem se recorrer a opções impensáveis. Bem sei que fazê-lo é fácil, simples, sacia as consciências bem pensantes; preenche um dogma de certa esquerda e permite encontrar um convenientíssimo culpado de tudo e mais alguma coisa.

Mas é um exercício exemplar de desonestidade intelectual.

Costa