sábado, janeiro 04, 2014

Camões, o liceu de todos os liceus


É impressionante a mobilização de amigos e conhecidos e alunos e professores do Liceu Camões (actuais e antigos, anónimos e VIP) em torno da necessidade, justa e urgente, em se arrancar com as obras de recuperação de que aquele carece há muito tempo (as últimas obras mais profundas foram realizadas na década de 1960!) e que chegaram a estar anunciadas (e pré-adjudicadas) pela Parque Escolar EPE, com projecto de 2009-2011, mas que não chegariam a sair do estirador. O concerto Camões, a Nossa Escola de há dias, no Coliseu dos Recreios, foi até agora o momento mais imaginativo e mais mediático dessa mobilização e, em boa verdade, será difícil a quem de direito, quase impossível, resistir-lhe a partir de agora.

Recuando um pouco no tempo, convém dizer que muitas dos intervenções do Programa de Modernização do Parque Escolar Destinado ao Ensino Secundário, delineado e implementado para 332 liceus (dos quase 500 existentes no país) pelo anterior Governo, primaram pela inevitável derrapagem orçamental das obras públicas, luxos despropositados, não transparência de procedimentos, empréstimos junto da banca com encargos elevadíssimos para o Estado, etc., situação a que o Tribunal de Contas, aliás, não se poupou em criticar severamente em auditoria feita em 2012.

Por outro lado, muitas das obras de recuperação e modernização levadas a cabo caracterizaram-se por descaracterizarem, paradoxal e brutalmente, edifícios históricos do nosso ensino liceal, de alguns dos mais importantes arquitectos portugueses, veja-se, em Lisboa: a destruição do belo anfiteatro do Liceu Pedro Nunes (de Ventura Terra, 1906), a construção no Passos Manuel (de Rosendo Carvalheira, 1911) de um corpo enterrado "alienígena" (mas esqueceram-se de recuperar a casa do reitor!), ou a "construção nova" em que se transformou o travestido D. Filipa de Lencastre (de Jorge Segurado, 1932).

Claro que o Camões, inaugurado em 1909, sob o traço do arquitecto Ventura Terra, é o "primeiro liceu moderno de Lisboa", tal qual os homólogos já enumerados, precisa de ver recuperados os seus corpos cansados (o LNEC tem sido peremptório quanto a isso) de ferro e tijolo, e garantida a segurança de todos que por lá passam, melhoradas as condições de conforto e ensino, modernizados os equipamentos, etc. Tal é mesmo urgente. Agora, não se deixe que o escavaquem, por favor!

"Abrir a escola à comunidade", como se diz na memória descritiva do projecto "em vias de", não pode significar derrubar ainda mais plátanos e tílias, alterar vãos ou erigir construção nova na nesga de terreno livre entre a fachada sul e o gradeamento da Rua da Escola Veterinária, pela simples razão de a escola ter estado sempre aberta a todos quantos lá quiseram entrar, fosse quem fosse. É que não é preciso nada disso, mesmo.

O Camões precisa, sim, de se libertar dos anexos que lhe foram construindo nas últimas décadas, com destaque para a "aventesma" junto à António Arroio, e aí sim residirá o grande desafio do arquitecto. Além disso, é bom não esquecer que ao contrário dos seus colegas já intervencionados D. Filipa, Passos Manuel e Pedro Nunes, que foram classificados já depois das obras finalizadas (o que no primeiro caso chega a ser insultuoso...), o Camões foi classificado Monumento de Interesse Público há muito pouco tempo (DR, 2.ª série, n.º 248 de 24 Dezembro 2012), pelo que o projecto (o já mencionado ou outro que o substitua) e as obras de que será alvo terão de se adaptar a essa nova situação e não a classificação à obra, como nos casos referidos. Nesse sentido, vai ser curioso assistir aos próximos capítulos.

Mas uma coisa é certa: nunca, como no caso do Camões (nem sequer no outro caso exasperante que se chama Conservatório Nacional), a sociedade em geral, e os media em particular, se mobilizou tanto em prol de obras de recuperação. E se dúvidas houvesse, caro Liceu Pedro Nunes, ficou provado que o Camões é de facto o liceu de todos os liceus.


In Diário de Notícias (2.1.2014)

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