domingo, setembro 10, 2017


A Unesco a destruir o património

Os casos do Cante e do Fado, mas que pode ser aplicado às línguas e dialectos.

Estive à pouco nas estruturas criadas em Serpa para apoiar o Cante e comprei alguns CDs de grupos do concelho.
Desde há muito que penso escrever sobre a má sorte que com a classificação da UNESCO recaiu sobre as expressões de cultura popular e também pode recair sobre línguas ou falas.
Vejamos o património é resultado das contradições entre as relações de produção e as forças produtivas no quadro de um ambiente determinado, mas que não é estático, e da espiritualidade que a partir desse se estrutura. Com as pedras e com os registos imperecíveis assim como  com  outros elementos difusos, a língua, a gastronomia, a música, a expressão plástica e outros.
As pedras vão-se degradando e o papel da classificação e o trabalho de descoberta de espólios e inventariação, seja dessas seja de elementos que lhe dão sentido é da maior valia.
Em relação a isso também se poderia falar de muitos erros dos burocratas da UNESCO, mas passemos adiante porque é mais difícil, salvo se formos taliban, dar cabo das pedras vivas e do passado dessas, embora, como sabemos também com o apoio da UNESCO deu-se cabo do Vale do Nilo, entre tantos outros, e não esqueçamos o Tua...
Mas embora o tema me tenha sido suscitado pela disparatada ideia de criptografar em lógica de ensino e construir uma gramática a partir desse absurdo, de certas falas que reflectem momentos sócio-eco-culturais, que existem num tempo e são reflexo desse, ao visitar estes espaços em Serpa (de onde virá o guito? Seremos nós a pagar?) tenho que dizer que entornei as águas.
Os CDs, e tudo o que os reflecte, e também com o fado é o mesmo, não têm nada, nada a ver com a memória o elemento que se procura preservar. É uma invenção, uma completa invenção para o turista e para o ignorante que hoje é a grande maioria dos consumidores das produções que passam na televisão ou que entram na grande teta do mercado de massas.
Não sei se era essa a intenção dos promotores das candidaturas, dos seus diversos autores, dos seus putativos beneficiários, mas o facto, a realidade é que com a classificação da UNESCO (haverá alguém preocupado com isso!?) o fado, o verdadeiro fado, de génese popular, vadio ou letrado, das tabernas e salões, de andarilhos e vadios/as, de improvisos e quadras elaboradas e cantadas por verdadeiros fadistas, que tinha andado de chinela ou a vender jornais, ou eram aristocratas, burgueses e escumalha, esse fado que ainda rompia de uma casa de meninas no Bairro Alto, ou do Café Luso, que se ouvia da janela de um palacete no Beato, ou num 2º andar para o Conde Barão, se ouvia quando um grão na asa se arrastava pelas escadarias de Coimbra, mas também numa tasca em Grândola, esse fado, o verdadeiro fado desapareceu, mercantilizado até pelos seus émulos, e hoje a entrar no Passeio dos Alegres e outras tretas dessas ou a fazer as delícias de excursões de japoneses que nem sabem o que estão a beber ( e pagar).
O Fado hoje é uma música banal cantada por vagos fadistas sem enquadramento sociocultural nem falhas no dizer ou na nota. Monotonia para inglês ver, na sua maioria.
Em relação ao Cante a situação é parecida. Tal como o Fado o Cante ainda mais estava ás portas da morte. O fascismo reprimiu-lhe a verve e procurou integrar nele canções gregorianas de igreja além de letras apologéticas de Estado Novo. E o que é grave é que, talvez reforçadas pela apologética idêntica do comunismo ( o Alentejo a alimentar o país, vejam lá!) , que lhe procurou integrar modas a louvar a reforma agrária e até o Vasco Gonçalves, o cante, o verdadeiro cante só sobrevivia escondido em tabernas (e nunca aí ouvi louvar o tal menino) e algures no campo pelas mulheres e tenho que confessar que eram do mais brejeiro (e claro divertidíssimo!).
Pois agora, talvez para alimentar toda a pandilha que foi criada com estes processos, brotam grupos profissionais de Cante, sem nunca terem ido à taberna e sem saberem a metade do que as “ceifeiras” , as verdadeiras sabiam.
Todo muito perfeito, tudo muito pronto para as salas de espectáculo e os filmes que promovem algo que não tem nada que ver com o Cante, com essa forma de resistência ao politicamente correcto e de luta contra a tirania do espírito.
A UNESCO não sabe, não deve saber que consagrou a polícia do espírito, consagrou um gosto e uma estética (e também uma gastronomia que só existe no fetiche do mediterrâneo) e com isso contribui para a machada final no que queria defender.
A UNESCO destruiu os Budas, como os taliban.

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