sexta-feira, agosto 06, 2010

Gelados finos no Chiado

A partir de agora o lisboeta não precisa de se meter no comboio que sai do Cais do Sodré e segue pelas agruras urbano-depressivas vizinhas rumo a Cascais, muito menos suportar o “passeio dos tristes” de fim-de-semana para sorver, ou lamber, conforme os casos, o gelado mais famoso de todos quantos povoam o nosso imaginário palatino desde os imemoriais tempos da nossa infância. A partir de agora, no espaço imediatamente ao lado do que já foi, imagine-se, “Le Bonheur des Dames”, ao cimo da Rua do Carmo (talvez fosse bom os UHF adaptarem a letra da sua canção às novas realidades), é agora possível gozar-se, que é disso que se trata, do melhor gelado que por cá se faz, parente mais próximo dos melhores gelados do mundo, lá para as bordas do Adriático. A partir de agora, o gelado não corre o risco de derreter no “tupperware” de levar a casa.

Àqueles sem idade suficiente para se lembrarem dos dias em que o avô do actual produtor da novel geladaria do Chiado, trabalhava para uma conhecida homóloga dos Restauradores, ou dos tempos da primeira geladaria já com o seu nome na montra, no Tamariz de um outro tempo; escusado será lembrar o percurso feito a pulso e o sucesso mais do que merecido de então e agora coroado, por via de neto, como todo senhor dos gelados da capital, relegando para o pódio secundário a mais discreta “prima” da Rua da Prata e a concha nata mais famosa, mas exageradamente doce, de Lisboa.

Memória vivas; tenho-as já da fase seguinte da sua carreira, no piso térreo do saudoso e “assassinado” Cinema São José, que tanta falta hoje faz, e daqueles gelados em tempo de intervalo de matiné. Depois, em 71, e até hoje, tenho-as da loja do centro comercial da Conde Valbom onde tenho delirado com a framboesa, o turrón, o coco, a manga, o morango e, invariavelmente, quando não apenas solitária, a excelsa nata.

É verdade que nos últimos anos, talvez pela procura massificada e/ou pelo desaparecimento do patriarca, nunca verdadeiramente substituído, os gelados não são o que eram e até. Apresentam de tempo em vez resquícios de laminados de gelo, ali e acolá demasiado líquidos. Por vezes, até, o senhor a quem cabe preencher o vazio do cone não sabe dosear os sabores convenientemente, e coloca sabor sobre sabor. Houve até uma proliferação de sabores e misturas, quiçá explosivas, na ânsia, talvez, de atrair novos públicos e acompanhar a modernidade. Compreensivelmente, a nova sociedade comercial fez um “up grade” no visual de lojas e vendedores, apostando na sala de estar. É o “marketing” e o “merchandise”, a diferenciação e a diversificação. Espero, melhor, desejo, que o salto não equivalha a uma alteração de qualidade no gelado, sob pena de se perder um vastíssimo património “gelateiro”, absolutamente único num país obrigado tempo demasiado ao geladinho de pau




In Jornal de Notícias (29/7/2010)

Sem comentários: