segunda-feira, maio 26, 2014

E-24: o elétrico que faz que anda mas não anda


Numa altura em que o mote do debate da Assembleia Municipal sobre os transportes públicos de Lisboa é "O que temos e o que queremos", nada melhor do que refletir sobre o caso paradigmático do elétrico 24, que funcionou regularmente entre o Carmo e Campolide, via Príncipe Real, Rato e Amoreiras, desde 1907 e até ao dia em que se construiu o parque de estacionamento de Campolide, em 1995, altura em que também se finou a extensão ao Cais do Sodré, e depois do ramal Rato-Alto de São João ter finado anos antes, em prol de mais automóveis e do lobby dos autocarros, em mais um episódio da nossa triste mania de deitarmos fora o que de bom vamos tendo, dessincronizando-nos mais uma vez, voluntariamente, com a Europa dos tram e do transporte público de reduzida poluição.

Finda a construção daquele estacionamento, tudo levava a crer que o elétrico voltaria a circular, mas não. Em 1997, no entanto, a Carris e a CML estabeleceram mesmo um protocolo pela reabertura da linha Carmo-Campolide, mal se concluíssem outras obras, agora no passadiço do Elevador de Santa Justa. Mais uma vez, porém, as obras terminariam mas do E-24 nem sombra.

Daí para cá tem-se assistido a uma novela, em que, verdade seja dita, a CML será a menos culpada, já que se a CML tem (tinha?) assento no CA da Carris, tem-no enquanto observadora; como tal, não manda, muito menos pode ir buscar os eléctricos ao depósito e pô-los a circular.

O tempo passa e com ele outras obras foram passando (o estacionamento subterrâneo do Camões, a reformulação do Largo Trindade Coelho) e já outras se anunciam (Largo Bordalo Pinheiro). E do E-24 nada, apenas (novas) promessas. Mas, seja por peso de consciência ou não, a verdade é que os carris e as catenárias daquela linha estão lá e operacionais (resolvidas que foram algumas peripécias), à espera. Portanto, a infraestrutura existe, o que é muito bom.

E não faltam razões para que o E-24 volte: económicas (prevê-se um ganho de 1,2 Meuro/ano), turísticas (evidentes), ambientais (idem) e de mobilidade (ibidem), patrimoniais, identitárias e de memória colectiva. A ligação Sodré-Rato está sobrelotada de autocarros e automóveis, com engarrafamentos a toda a hora, altas buzinadelas e o ar é irrespirável naquele funil da R. S. Pedro de Alcântara, junto a São Roque, onde o perigo é uma constante, aliás, e o panorama é desolador ao olho do turista.

Por outro lado, a zona está a viver um boom extraordinário, que começou com a abertura do interface no Cais do Sodré, a que se juntou uma crescente popularidade cultural e turística colina acima, que levou a mais hotéis, restaurantes, lojas; jardins e miradouros com mais gente, etc., pelo que a cidade só terá a ganhar com o regresso do E-24.

E que contra-argumenta a Carris a tudo isto? Que não tem composições suficientes para repor a linha e que, em termos de mobilidade, são perfeitamente suficientes as carreiras de autocarro que existem. Pode repetir, s.f.f.?

Não temos culpa de que a Carris vendesse composições a eito durante os anos 90, quando sabia que viria a necessitar delas mais tarde (ou queriam importar outros modelos?). Além de que a supressão do autocarro 790 fez que apenas circule um autocarro naquele percurso, o 758. Por outro lado, para se reabrir a linha 24, bastarão quatro composições (enquanto dois correm para cima, dois seguirão para baixo), estimando-se em 20" o percurso entre o Sodré e Campolide e, por conseguinte, um tempo de espera semelhante entre cada elétrico. Além do mais, em caso de necessidade, podem sempre protocolizar a cedência de elétricos a um colecionador privado, que já manifestou total disponibilidade nesse sentido e que os tem operacionais! Além disso, o E-24 permite estabelecer a ligação entre as estações de metro Baixa-Chiado e Rato.

Concluindo, ele é a solução óbvia em termos ambientais e de mobilidade, é uma solução digna, moderna, de enorme potencial turístico e, não menos importante, algo pelo que o lisboeta nutre grande afectividade.

Resumindo, toda a gente parece estar de acordo em que a reabertura do E-24 é do interesse público (o que não é sinónimo de a vedar à exploração privada - e porque não?), mas a coisa não avança. Até quando?

Talvez seja desta, quem sabe, mas mais grupos de trabalho, não, por favor, senão daqui por dez anos estaremos a discutir o mesmo, mas talvez já sem carris e catenárias disponíveis, e paciência para o efeito.


In DN (23.5.2014)

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