Ou quase. A verdade é que ainda há profissões dos tempos antigos, ocupações artesanais, que sobrevivem em Lisboa, embora muito pouca gente repare nisso, por culpa da aceleração do ritmo de vida. É que essas actividades que se conservaram de outras eras estão associadas a uma aparente e enganadora inacção.
Os calceteiros marítimos, por exemplo, continuam a abundar em Lisboa. Sozinhos ou em grupo, podem ser encontrados à porta de tascas, cafés, pastelarias e pequenos comércios e lojas, esperando por um dia de absoluta calmaria em que o Tejo esteja, como se diz em jargão de surfista, totalmente flat, para poderem exercer a sua actividade. Como isto quase nunca sucede, os calceteiros marítimos costumam ser confundidos, injustamente, com os muitos calões e madraços que infestam a capital.
Há ainda os polidores de esquinas, cuja função é manterem as ditas dos prédios em bom estado e a reluzir, para o regalo dos concidadãos e o encanto dos turistas. É vê-los logo de manhã, encostados aos seus postos de trabalho por toda a cidade, desde os bairros tradicionais às zonas mais modernas, gastando os fundilhos das calças e as costas das camisas, dos casacos e dos blusões por uma Lisboa com muito polimento, mas quantas vezes incompreendidos pelos alfacinhas, que os tomam por mandriões retintos ou rueiros descarados.
Há que não esquecer os segura-prédios. Estes diferem dos polidores de esquinas no facto de passarem o tempo encostados não às esquinas, mas às paredes dos próprios prédios, em missão de prevenção e antecipação de uma qualquer falha nas suas estruturas, quando não mesmo de uma comoção sísmica. Mesmo assim, ainda há quem pense que estes dedicados trabalhadores não passam de calaceiros de marca maior.
Falta ainda falar nos guarda-sombras. A sua função, desenvolvida maioritariamente nos meses mais suaves da Primavera e nos de canícula do Verão, consiste em tomar conta de todo o tipo de sombras urbanas, desde as das árvores das ruas até às dos bancos dos jardins, e mesmo as que são projectadas pelos edifícios, para que possam ser usufruídas pelas crianças, pelos idosos e reformados, por senhoras grávidas e visitantes estrangeiros.
Pois estes profissionais que se entregam com grande devoção ao seu trabalho - é ver as horas a fio que passam a cuidar das sombras - são as mais das vezes classificados de indolentes do piorio, de grandessísimos parasitas.
É triste que a cidade desconsidere desta forma actividades tão típicas, tão ancestrais e sobretudo tão genuinamente artesanais como estas.
Eurico de Barros
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