Contra os acidentes, informar, informar-Por Luís Francisco-PUBLICO
A capital do país é bem o símbolo de um flagelo nacional chamado atropelamentos. Mais do que apontar o dedo, o grande desafio é mesmo mudar mentalidades
Há quem diga que os irresponsáveis são os condutores. Outros apontam o dedo à imprudência dos peões. A razão, como sempre, andará no meio destas visões extremadas, mas um facto ninguém nega: em Portugal, os atropelamentos são um flagelo e todos os anos tingem ainda mais de vermelho as estatísticas da sinistralidade. O cenário é complexo e exige atenção.
Mais do que qualquer outra coisa, o que urge realmente é falar no assunto. "As pessoas têm de estar conscientes de que atravessar uma estrada é expor-se a um risco", avisa o subcomissário João Pinheiro, comandante da Divisão de Trânsito da PSP de Lisboa. "O fundamental é passar a mensagem, para que as pessoas tenham mais atenção. O problema dos atropelamentos é motivado por uma série de razões, cuja responsabilidade é dos automobilistas, mas também, e sobretudo, dos peões."
Pode parecer uma crueldade, apontar assim o dedo às vítimas - porque, quando um carro e um ser humano entram em rota de colisão, já se sabe quem vai sair pior... Mas é exactamente isso que tem de ser feito. Independentemente de aos condutores se exigir atenção e respeito pelo código da estrada, os peões têm de estar conscientes da sua vulnerabilidade. Para eles, ter muito cuidado pode ser uma questão de sobrevivência. "A 50 km/h, entre 50 a 60 por cento dos atropelados morrem", alerta Manuel João Ramos, presidente da ACA-M (Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados).
Só na região de Lisboa, morreram nove pessoas em 2009, em consequência de atropelamentos. Registou-se um total de 53 feridos graves. Houve, em média, duas ocorrências deste tipo por dia. E Lisboa é bem o retrato do país neste particular: representa cerca de 40 por cento do total nacional de atropelamentos.
Nas estatísticas de sinistralidade compiladas pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, os atropelamentos surgem como a segunda maior parcela das vítimas mortais na estrada. No primeiro semestre de 2009 (o relatório anual ainda não foi divulgado), morreram 56 pessoas atropeladas, um subtotal só superado pelos que viajavam em automóveis ligeiros (150). Pesados (12), velocípedes (13), ciclomotores (27) e motociclos (55) completam a lista, para um somatório final de 326 mortes.
Problema nacional
"A União Europeia definiu três causas mais "universais", aquelas em que se devem concentrar esforços para atingir a meta de diminuir a sinistralidade em 50 por cento. São elas o álcool, o excesso de velocidade e os sistemas de retenção. Mas nós, em Portugal, juntamos-lhes duas que são muito nossas: as motos e os atropelamentos." A explicação é dada pelo subcomissário Pinheiro sob o viaduto do Campo Grande, em Lisboa, onde já se nota o movimento (e a violência, aqui e ali) que antecede o jogo da Liga Europa de futebol entre o Sporting e o Atlético de Madrid.
Todos os dias, a PSP regista problemas entre peões e automóveis. Bom, nem todos os dias... "Ontem [quarta-feira, 17 de Março], não houve qualquer atropelamento", anuncia o comandante da Divisão de Trânsito de Lisboa. "Mas é raro", apressa-se a completar. Na cabeça deste homem os números e os factos cruzam-se com as imagens reais dos acidentes. Fala das estatísticas, mas também recorda momentos dramáticos. Momentos mais do que suficientes para justificar "tudo o que se possa fazer neste campo".
Lisboa e Portugal têm um problema sério de atropelamentos. No caso da capital, a polícia centra a sua acção fiscalizadora nas passadeiras, tentando evitar casos de desrespeito da sinalização por parte dos condutores. "Fora das passadeiras é quase impossível fazer uma fiscalização eficaz", assume o subcomissário Pinheiro. O que deixa a bola claramente no campo dos automobilistas e peões.
Se os primeiros terão sobre si o olhar atento dos polícias, já os peões não parecem, para já, na mira de quem passa multas. O desrespeito pelos sinais é generalizado, quase faz parte da imagem de marca de ser português. Em Portugal, atravessa-se a estrada quando não vêm carros, ou mesmo pelo meio deles, nas passadeiras ou fora delas, com o semáforo vermelho ou verde. Arrisca-se, lá está.
Multar os peões é possível e a punição está contemplada na lei. Mas não é essa a prioridade dos homens que estão no terreno. "A verdade é que não teria qualquer efeito didáctico", garante o graduado da PSP. "O que é preciso fazer é insistir na mensagem, falar no problema. É preciso que os peões sejam mais responsáveis e estejam mais atentos." De caminho, há que disciplinar os condutores e estudar formas de adequar as infra-estruturas às novas realidades.
O peso da idade
Numa sociedade em rápido processo de envelhecimento, tentar contrariar os números de atropelamentos pode tornar-se uma batalha perdida, se não forem promovidas mudanças estruturais a par da mudança de mentalidades. É essa a opinião de Vítor Meirinhos, investigador da ACA-M e da Universidade Nova de Lisboa. "O cenário é complicado. Mas há medidas a tomar: em primeiro lugar, a temporização dos semáforos devia ser superior, tendo em conta que os idosos e as crianças andam mais devagar e são os mais afectados. Depois, obrigar os veículos a circular a baixa velocidade nas zonas onde há passadeiras."
Meirinhos, que fez um estudo sobre os acidentes envolvendo peões na cidade de Lisboa (incluído num livro, The Walker and the City, apresentado anteontem), salienta a diminuição "muito grande do número de vítimas entre 2006 [12 mortos, 97 feridos graves] e 2009 [9 mortos, 53 feridos graves]". Mas o total anual de ocorrências superior a 700 continua a ser muito pesado, ainda mais com o aumento brutal do número de mortos no último ano - foram três em 2008 e nove em 2009.
O número de atropelamentos foi semelhante, com 728 ocorrências em 2008 e 736 no ano seguinte, mas a sua gravidade aumentou. E isto apesar da atenção especial que este tipo de sinistralidade passou a merecer da PSP. Estarão os polícias a falhar a sua missão ou há factores que prejudicam a sua acção? "Este mês, desde que começou a operação Pela Vida, Trave, registámos 27 atropelamentos, em 26 artérias diferentes. Todos são referenciados por GPS e, olhando para o mapa, não há acumulação de marcas. É um aqui, outro ali", refere o subcomissário Pinheiro.
Ou seja, não há locais óbvios para concentrar esforços de prevenção e (se necessário) repressão. "As vias mais problemáticas são muito longas e é por isso que acumulam ocorrências." À cabeça de todas, a Estrada de Benfica, extensa, congestionada, confusa, com estacionamento dos dois lados da via (o que reduz a visibilidade dos automobilistas). Em 2009, aconteceram nesta via 24 atropelamentos, metade dos quais fora das passadeiras - a relação foi de 25/17 no ano anterior, o que parece demonstrar alguma eficácia na vigilância policial das passagens de peões.
Só que os portugueses atravessam a estrada em todo o lado - quanto mais não seja porque, em muitas vias, as passadeiras ficam muito afastadas umas das outras. Em Lisboa, no ano passado, 56,5 por cento dos atropelamentos aconteceram fora das passagens de peões, com destaque para os oito verificados na Avenida Fontes Pereira de Melo, onde em 2008 não havia registo estatístico (abaixo de cinco ocorrências).
Os botões funcionam?
Por todo o país, o trabalho prioritário das polícias é tanto o de educar os peões como o de fiscalizar os condutores. No cenário actual, e pese embora a constatação óbvia de que os automobilistas portugueses não são uma companhia aconselhável a ninguém no asfalto, muitos dos dramas entre carros e peões são da responsabilidade destes últimos. Mas também há razões estruturais que empurram os portugueses a fazerem o que não devem quando andam a pé pela estrada.
Manuel João Ramos aponta três lacunas claras nos semáforos. "As botoneiras não dão feedback a quem as acciona; ou seja, depois de carregarmos no botão, não sabemos se o sistema recebeu o nosso sinal. Também faltam sinais sonoros, fundamentais para os cegos. E os tempos de verde para os automóveis são muito longos", enumera o presidente da ACA-M. Que continua no seu raciocínio: "O sistema Gertrude [que rege os semáforos em Lisboa] está feito para criar uma onda verde, como forma de escoar o tráfego. Quando abre o verde, dá para acelerar até ao próximo semáforo e isso implica que os carros atingem velocidades elevadas sem serem refreados pelo sistema."
E isto pode ter consequências dramáticas. Recordando que um pouco mais de metade dos atropelados a 50 km/h acaba por morrer, Manuel João Ramos elucida que essa percentagem desce para 30 por cento a 30 km/h. Mas o risco continua a ser muito alto. "Agora imaginemos o que é ser atingido por um carro a 80 km/h..." Nessas alturas, quando a vida é o preço a pagar, de pouco vale apontar o dedo.
O brutal acidente de 2007, quando três pessoas foram trucidadas junto à Praça do Comércio, em Lisboa, por um automóvel desgovernado, concentrou as atenções do país para o problema dos atropelamentos. Mas o próprio peso da rotina acabou por esbater o impacto desse drama em particular e a força dos números. É esse adormecimento que a PSP quer contrariar com as suas campanhas e a sua presença nas ruas.
Porque a tendência das sociedades actuais é cruel no que toca às estatísticas de atropelamentos. As pessoas vivem cada vez mais e têm vidas activas até idades mais avançadas. Mas isso não significa que mantenham intactas as suas capacidades físicas - e essa desadequação entre o que a cabeça pensa e as pernas andam torna os grupos etários mais elevados vítimas preferenciais de atropelamento. Em 2009, no primeiro semestre, morreram 56 pessoas atingidas por automóveis. Dessas, 26 tinham 65 ou mais anos de idade.
Mapa de risco
Em Portugal, ao contrário do que sucede noutros países, as crianças não têm um peso relevante nas estatísticas de atropelamentos. Ainda assim, a PSP organiza operações de fiscalização das passadeiras no início e final do ano escolar, o que, no entender do subcomissário Pinheiro, "reforça a mensagem junto dos mais novos". Outro grupo de risco lá fora, o dos ciclistas, também não parece ter ainda dimensão entre nós (pelo menos em Lisboa) para se destacar.
O que nos deixa com os adultos e a típica tendência portuguesa para a anarquia... Seja ela motivada pela indisciplina individual, pela inconsciência colectiva ou pela inacção das autoridades. Um relance pela cidade de Lisboa mostra os mesmos problemas que surgem pelo resto do país.
Os peões atravessam fora da passadeira, esteja ela no chão (na Praça D. Pedro IV com a Rua da Betesga, por exemplo) ou no ar (na Avenida da Índia, junto à estação de comboios de Belém, a passagem superior está às moscas e os peões preferem arriscar-se nas quatro faixas de asfalto). Os automóveis desrespeitam os semáforos de forma sistemática (Rua do Ouro), ou então o sinal verde para peões foi calculado com base no potencial de aceleração de um finalista olímpico dos 100 metros (na Avenida 24 de Julho, em frente ao Bar Mao, por exemplo).
Faltam passeios ou estes são perigosos (veja-se o cruzamento da Rua Carolina Michaëlis com a Gomes Pereira), há locais onde os despistes são comuns (como a curva do Palácio de Queluz, no IC19, ou a entrada no Viaduto Duarte Pacheco, para quem sai de Lisboa). A boa notícia, nestes casos, é que não são, normalmente, zonas onde os peões circulem com frequência. E depois há as obras. Neste momento, em Lisboa, avultam as da Praça do Comércio e vias envolventes.
Estes locais não dirão nada a quem não circula por Lisboa. Mas é sempre um bom exercício pensar nos factores extra de risco que podem surgir-nos pelo caminho. Porque o maior perigo, em Portugal, é a facilidade com que as pessoas se esquecem de quão perigoso é andar na estrada. Principalmente a pé.
A capital do país é bem o símbolo de um flagelo nacional chamado atropelamentos. Mais do que apontar o dedo, o grande desafio é mesmo mudar mentalidades
Há quem diga que os irresponsáveis são os condutores. Outros apontam o dedo à imprudência dos peões. A razão, como sempre, andará no meio destas visões extremadas, mas um facto ninguém nega: em Portugal, os atropelamentos são um flagelo e todos os anos tingem ainda mais de vermelho as estatísticas da sinistralidade. O cenário é complexo e exige atenção.
Mais do que qualquer outra coisa, o que urge realmente é falar no assunto. "As pessoas têm de estar conscientes de que atravessar uma estrada é expor-se a um risco", avisa o subcomissário João Pinheiro, comandante da Divisão de Trânsito da PSP de Lisboa. "O fundamental é passar a mensagem, para que as pessoas tenham mais atenção. O problema dos atropelamentos é motivado por uma série de razões, cuja responsabilidade é dos automobilistas, mas também, e sobretudo, dos peões."
Pode parecer uma crueldade, apontar assim o dedo às vítimas - porque, quando um carro e um ser humano entram em rota de colisão, já se sabe quem vai sair pior... Mas é exactamente isso que tem de ser feito. Independentemente de aos condutores se exigir atenção e respeito pelo código da estrada, os peões têm de estar conscientes da sua vulnerabilidade. Para eles, ter muito cuidado pode ser uma questão de sobrevivência. "A 50 km/h, entre 50 a 60 por cento dos atropelados morrem", alerta Manuel João Ramos, presidente da ACA-M (Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados).
Só na região de Lisboa, morreram nove pessoas em 2009, em consequência de atropelamentos. Registou-se um total de 53 feridos graves. Houve, em média, duas ocorrências deste tipo por dia. E Lisboa é bem o retrato do país neste particular: representa cerca de 40 por cento do total nacional de atropelamentos.
Nas estatísticas de sinistralidade compiladas pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, os atropelamentos surgem como a segunda maior parcela das vítimas mortais na estrada. No primeiro semestre de 2009 (o relatório anual ainda não foi divulgado), morreram 56 pessoas atropeladas, um subtotal só superado pelos que viajavam em automóveis ligeiros (150). Pesados (12), velocípedes (13), ciclomotores (27) e motociclos (55) completam a lista, para um somatório final de 326 mortes.
Problema nacional
"A União Europeia definiu três causas mais "universais", aquelas em que se devem concentrar esforços para atingir a meta de diminuir a sinistralidade em 50 por cento. São elas o álcool, o excesso de velocidade e os sistemas de retenção. Mas nós, em Portugal, juntamos-lhes duas que são muito nossas: as motos e os atropelamentos." A explicação é dada pelo subcomissário Pinheiro sob o viaduto do Campo Grande, em Lisboa, onde já se nota o movimento (e a violência, aqui e ali) que antecede o jogo da Liga Europa de futebol entre o Sporting e o Atlético de Madrid.
Todos os dias, a PSP regista problemas entre peões e automóveis. Bom, nem todos os dias... "Ontem [quarta-feira, 17 de Março], não houve qualquer atropelamento", anuncia o comandante da Divisão de Trânsito de Lisboa. "Mas é raro", apressa-se a completar. Na cabeça deste homem os números e os factos cruzam-se com as imagens reais dos acidentes. Fala das estatísticas, mas também recorda momentos dramáticos. Momentos mais do que suficientes para justificar "tudo o que se possa fazer neste campo".
Lisboa e Portugal têm um problema sério de atropelamentos. No caso da capital, a polícia centra a sua acção fiscalizadora nas passadeiras, tentando evitar casos de desrespeito da sinalização por parte dos condutores. "Fora das passadeiras é quase impossível fazer uma fiscalização eficaz", assume o subcomissário Pinheiro. O que deixa a bola claramente no campo dos automobilistas e peões.
Se os primeiros terão sobre si o olhar atento dos polícias, já os peões não parecem, para já, na mira de quem passa multas. O desrespeito pelos sinais é generalizado, quase faz parte da imagem de marca de ser português. Em Portugal, atravessa-se a estrada quando não vêm carros, ou mesmo pelo meio deles, nas passadeiras ou fora delas, com o semáforo vermelho ou verde. Arrisca-se, lá está.
Multar os peões é possível e a punição está contemplada na lei. Mas não é essa a prioridade dos homens que estão no terreno. "A verdade é que não teria qualquer efeito didáctico", garante o graduado da PSP. "O que é preciso fazer é insistir na mensagem, falar no problema. É preciso que os peões sejam mais responsáveis e estejam mais atentos." De caminho, há que disciplinar os condutores e estudar formas de adequar as infra-estruturas às novas realidades.
O peso da idade
Numa sociedade em rápido processo de envelhecimento, tentar contrariar os números de atropelamentos pode tornar-se uma batalha perdida, se não forem promovidas mudanças estruturais a par da mudança de mentalidades. É essa a opinião de Vítor Meirinhos, investigador da ACA-M e da Universidade Nova de Lisboa. "O cenário é complicado. Mas há medidas a tomar: em primeiro lugar, a temporização dos semáforos devia ser superior, tendo em conta que os idosos e as crianças andam mais devagar e são os mais afectados. Depois, obrigar os veículos a circular a baixa velocidade nas zonas onde há passadeiras."
Meirinhos, que fez um estudo sobre os acidentes envolvendo peões na cidade de Lisboa (incluído num livro, The Walker and the City, apresentado anteontem), salienta a diminuição "muito grande do número de vítimas entre 2006 [12 mortos, 97 feridos graves] e 2009 [9 mortos, 53 feridos graves]". Mas o total anual de ocorrências superior a 700 continua a ser muito pesado, ainda mais com o aumento brutal do número de mortos no último ano - foram três em 2008 e nove em 2009.
O número de atropelamentos foi semelhante, com 728 ocorrências em 2008 e 736 no ano seguinte, mas a sua gravidade aumentou. E isto apesar da atenção especial que este tipo de sinistralidade passou a merecer da PSP. Estarão os polícias a falhar a sua missão ou há factores que prejudicam a sua acção? "Este mês, desde que começou a operação Pela Vida, Trave, registámos 27 atropelamentos, em 26 artérias diferentes. Todos são referenciados por GPS e, olhando para o mapa, não há acumulação de marcas. É um aqui, outro ali", refere o subcomissário Pinheiro.
Ou seja, não há locais óbvios para concentrar esforços de prevenção e (se necessário) repressão. "As vias mais problemáticas são muito longas e é por isso que acumulam ocorrências." À cabeça de todas, a Estrada de Benfica, extensa, congestionada, confusa, com estacionamento dos dois lados da via (o que reduz a visibilidade dos automobilistas). Em 2009, aconteceram nesta via 24 atropelamentos, metade dos quais fora das passadeiras - a relação foi de 25/17 no ano anterior, o que parece demonstrar alguma eficácia na vigilância policial das passagens de peões.
Só que os portugueses atravessam a estrada em todo o lado - quanto mais não seja porque, em muitas vias, as passadeiras ficam muito afastadas umas das outras. Em Lisboa, no ano passado, 56,5 por cento dos atropelamentos aconteceram fora das passagens de peões, com destaque para os oito verificados na Avenida Fontes Pereira de Melo, onde em 2008 não havia registo estatístico (abaixo de cinco ocorrências).
Os botões funcionam?
Por todo o país, o trabalho prioritário das polícias é tanto o de educar os peões como o de fiscalizar os condutores. No cenário actual, e pese embora a constatação óbvia de que os automobilistas portugueses não são uma companhia aconselhável a ninguém no asfalto, muitos dos dramas entre carros e peões são da responsabilidade destes últimos. Mas também há razões estruturais que empurram os portugueses a fazerem o que não devem quando andam a pé pela estrada.
Manuel João Ramos aponta três lacunas claras nos semáforos. "As botoneiras não dão feedback a quem as acciona; ou seja, depois de carregarmos no botão, não sabemos se o sistema recebeu o nosso sinal. Também faltam sinais sonoros, fundamentais para os cegos. E os tempos de verde para os automóveis são muito longos", enumera o presidente da ACA-M. Que continua no seu raciocínio: "O sistema Gertrude [que rege os semáforos em Lisboa] está feito para criar uma onda verde, como forma de escoar o tráfego. Quando abre o verde, dá para acelerar até ao próximo semáforo e isso implica que os carros atingem velocidades elevadas sem serem refreados pelo sistema."
E isto pode ter consequências dramáticas. Recordando que um pouco mais de metade dos atropelados a 50 km/h acaba por morrer, Manuel João Ramos elucida que essa percentagem desce para 30 por cento a 30 km/h. Mas o risco continua a ser muito alto. "Agora imaginemos o que é ser atingido por um carro a 80 km/h..." Nessas alturas, quando a vida é o preço a pagar, de pouco vale apontar o dedo.
O brutal acidente de 2007, quando três pessoas foram trucidadas junto à Praça do Comércio, em Lisboa, por um automóvel desgovernado, concentrou as atenções do país para o problema dos atropelamentos. Mas o próprio peso da rotina acabou por esbater o impacto desse drama em particular e a força dos números. É esse adormecimento que a PSP quer contrariar com as suas campanhas e a sua presença nas ruas.
Porque a tendência das sociedades actuais é cruel no que toca às estatísticas de atropelamentos. As pessoas vivem cada vez mais e têm vidas activas até idades mais avançadas. Mas isso não significa que mantenham intactas as suas capacidades físicas - e essa desadequação entre o que a cabeça pensa e as pernas andam torna os grupos etários mais elevados vítimas preferenciais de atropelamento. Em 2009, no primeiro semestre, morreram 56 pessoas atingidas por automóveis. Dessas, 26 tinham 65 ou mais anos de idade.
Mapa de risco
Em Portugal, ao contrário do que sucede noutros países, as crianças não têm um peso relevante nas estatísticas de atropelamentos. Ainda assim, a PSP organiza operações de fiscalização das passadeiras no início e final do ano escolar, o que, no entender do subcomissário Pinheiro, "reforça a mensagem junto dos mais novos". Outro grupo de risco lá fora, o dos ciclistas, também não parece ter ainda dimensão entre nós (pelo menos em Lisboa) para se destacar.
O que nos deixa com os adultos e a típica tendência portuguesa para a anarquia... Seja ela motivada pela indisciplina individual, pela inconsciência colectiva ou pela inacção das autoridades. Um relance pela cidade de Lisboa mostra os mesmos problemas que surgem pelo resto do país.
Os peões atravessam fora da passadeira, esteja ela no chão (na Praça D. Pedro IV com a Rua da Betesga, por exemplo) ou no ar (na Avenida da Índia, junto à estação de comboios de Belém, a passagem superior está às moscas e os peões preferem arriscar-se nas quatro faixas de asfalto). Os automóveis desrespeitam os semáforos de forma sistemática (Rua do Ouro), ou então o sinal verde para peões foi calculado com base no potencial de aceleração de um finalista olímpico dos 100 metros (na Avenida 24 de Julho, em frente ao Bar Mao, por exemplo).
Faltam passeios ou estes são perigosos (veja-se o cruzamento da Rua Carolina Michaëlis com a Gomes Pereira), há locais onde os despistes são comuns (como a curva do Palácio de Queluz, no IC19, ou a entrada no Viaduto Duarte Pacheco, para quem sai de Lisboa). A boa notícia, nestes casos, é que não são, normalmente, zonas onde os peões circulem com frequência. E depois há as obras. Neste momento, em Lisboa, avultam as da Praça do Comércio e vias envolventes.
Estes locais não dirão nada a quem não circula por Lisboa. Mas é sempre um bom exercício pensar nos factores extra de risco que podem surgir-nos pelo caminho. Porque o maior perigo, em Portugal, é a facilidade com que as pessoas se esquecem de quão perigoso é andar na estrada. Principalmente a pé.
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