A Unesco a destruir o património
Os
casos do Cante e do Fado, mas que pode ser aplicado às línguas e dialectos.
Estive à pouco nas estruturas criadas em Serpa para apoiar o Cante e
comprei alguns CDs de grupos do concelho.
Desde há muito que penso escrever sobre a má sorte que com a
classificação da UNESCO recaiu sobre as expressões de cultura popular e também
pode recair sobre línguas ou falas.
Vejamos o património é resultado das contradições entre as relações de
produção e as forças produtivas no quadro de um ambiente determinado, mas que
não é estático, e da espiritualidade que a partir desse se estrutura. Com as
pedras e com os registos imperecíveis assim como com outros
elementos difusos, a língua, a gastronomia, a música, a expressão plástica e
outros.
As pedras vão-se degradando e o papel da classificação e o trabalho de
descoberta de espólios e inventariação, seja dessas seja de elementos que lhe
dão sentido é da maior valia.
Em relação a isso também se poderia falar de muitos erros dos burocratas
da UNESCO, mas passemos adiante porque é mais difícil, salvo se formos taliban,
dar cabo das pedras vivas e do passado dessas, embora, como sabemos também com
o apoio da UNESCO deu-se cabo do Vale do Nilo, entre tantos outros, e não
esqueçamos o Tua...
Mas embora o tema me tenha sido suscitado pela disparatada ideia de
criptografar em lógica de ensino e construir uma gramática a partir desse
absurdo, de certas falas que reflectem momentos sócio-eco-culturais, que
existem num tempo e são reflexo desse, ao visitar estes espaços em Serpa (de
onde virá o guito? Seremos nós a pagar?) tenho que dizer que entornei as águas.
Os CDs, e tudo o que os reflecte, e também com o fado é o mesmo, não têm
nada, nada a ver com a memória o elemento que se procura preservar. É uma
invenção, uma completa invenção para o turista e para o ignorante que hoje é a
grande maioria dos consumidores das produções que passam na televisão ou que
entram na grande teta do mercado de massas.
Não sei se era essa a intenção dos promotores das candidaturas, dos
seus diversos autores, dos seus putativos beneficiários, mas o facto, a
realidade é que com a classificação da UNESCO (haverá alguém preocupado com
isso!?) o fado, o verdadeiro fado, de génese popular, vadio ou letrado, das
tabernas e salões, de andarilhos e vadios/as, de improvisos e quadras
elaboradas e cantadas por verdadeiros fadistas, que tinha andado de chinela ou
a vender jornais, ou eram aristocratas, burgueses e escumalha, esse fado que
ainda rompia de uma casa de meninas no Bairro Alto, ou do Café Luso, que se
ouvia da janela de um palacete no Beato, ou num 2º andar para o Conde Barão, se
ouvia quando um grão na asa se arrastava pelas escadarias de Coimbra, mas
também numa tasca em Grândola, esse fado, o verdadeiro fado desapareceu,
mercantilizado até pelos seus émulos, e hoje a entrar no Passeio dos Alegres e
outras tretas dessas ou a fazer as delícias de excursões de japoneses que nem
sabem o que estão a beber ( e pagar).
O Fado hoje é uma música banal cantada por vagos fadistas sem
enquadramento sociocultural nem falhas no dizer ou na nota. Monotonia para
inglês ver, na sua maioria.
Em relação ao Cante a situação é parecida. Tal como o Fado o Cante
ainda mais estava ás portas da morte. O fascismo reprimiu-lhe a verve e procurou
integrar nele canções gregorianas de igreja além de letras apologéticas de
Estado Novo. E o que é grave é que, talvez reforçadas pela apologética idêntica
do comunismo ( o Alentejo a alimentar o país, vejam lá!) , que lhe procurou
integrar modas a louvar a reforma agrária e até o Vasco Gonçalves, o cante, o
verdadeiro cante só sobrevivia escondido em tabernas (e nunca aí ouvi louvar o
tal menino) e algures no campo pelas mulheres e tenho que confessar que eram do
mais brejeiro (e claro divertidíssimo!).
Pois agora, talvez para alimentar toda a pandilha que foi criada com
estes processos, brotam grupos profissionais de Cante, sem nunca terem ido à
taberna e sem saberem a metade do que as “ceifeiras” , as verdadeiras sabiam.
Todo muito perfeito, tudo muito pronto para as salas de espectáculo e
os filmes que promovem algo que não tem nada que ver com o Cante, com essa
forma de resistência ao politicamente correcto e de luta contra a tirania do
espírito.
A UNESCO não sabe, não deve saber que consagrou a polícia do espírito,
consagrou um gosto e uma estética (e também uma gastronomia que só existe no
fetiche do mediterrâneo) e com isso contribui para a machada final no que
queria defender.
A UNESCO destruiu os Budas, como os taliban.