quinta-feira, outubro 08, 2020

 

MÁRIO CLÁUDIO

Mário Eloy, "Auto-retrato" (1930-1932), Museu Nacional de Arte Contemporânea

Mário Eloy, "Auto-retrato" (1930-1932), Museu Nacional de Arte Contemporânea

D.D.

Implanta-se a três quartos defronte do espelho, oculta a orelha sinistra, e lança ao mundo a suspeita de que, ele também, a terá cortado, possesso do etílico ciúme do génio comum. De olhos esbugalhados no pavor da fala, refugia-se na arrogância do perseguido, do anómalo, e do indecifrável. Pudesse a coragem ampará-lo, optaria pela fuga, de pernas e braços ensarilhados, insecto derrubado, e incapaz de se levantar. Na exiguidade do atelier defende-se do frio que nasce de dentro, e que ele enfrenta com sucessivos abastecimentos de ripas à salamandra.

Vigia o fogo com tanta frequência que a fuligem lhe impregna a camisola, ora verde, ora marron, consoante a intensidade da luz da tardinha. Com um pedaço amachucado do Diário de Notícias improvisa a mecha para reacender o cachimbo, instrumento que lhe atenua a raiva, lhe desfaz a confusão, e lhe elimina a cefaleia.

As paredes apertam-no num abraço letal, movidas pelo ronco do cláxon dos automóveis, pelo assobio do vento nas tílias, e pelo frigir da telefonia do vizinho do terceiro direito. Quem como ele não consegue reunir a maquia bastante, e tirar do prego a ensebada gabardine, compensa a vergonha com o contorno rigoroso dos lábios. Mas ao atribuir-se a seriedade do adolescente bem comportado, e ainda não despedido da criança mimalha, cristaliza na mirada que lhe atraiçoa o propósito, e que o traz sob a ameaça do presídio, ou do manicómio.

Não conta com a solidariedade do irmão, nem com a estima do amigo. Admiram-lhe o talento de que duvidam, e festejam-lhe a excentricidade de que troçam, recusando subsidiá-lo por receio da fraude que os desautorize. A esclerótica de uma das vistas, mais patente do que a da outra, se não lhe denunciar o excessivo estrabismo, acusará a noite mal dormida, a ceia de açorda sem jaquinzinhos, ou a aturada frequência da girl do Parque Mayer. Quando a manhã desperta a pequena tela, expondo valores que ele próprio não considerara, a corda do pesadelo apaga-se-lhe da lembrança, e apercebe-se do cachecol colorido, tricotado pela assistente da galeria de Berlim.

O auto-retrato quase completo dissocia-se das imagens da mulher e do filho, afastados na impossibilidade de arrostar com o homem da casa. Exauridas as economias que as amesquinham, acabou-se-lhes o acesso aos luxos pelintras, um par de meias de vidro, ou uma bandolete doirada, coisas que as reconciliam com o galão antes de se deitarem.

Sem emprego para a sua negra energia, e pressentindo a inexplicável certeza da conclusão da obra, consente-se o devaneio da escuta da Singer da rapariga do rés-do-chão, uma perliquitetes que se ri dele, sempre que o encontra no átrio, constrangido no fato gasto, e largando o cheirinho da água-de-Colónia favorecida pelos chulos, e pelos inscritos na Legião Portuguesa. Internam-no no Hospital do Telhal, trémulo diante de facas e torniquetes, máscaras e relógios, e agulhas hipodérmicas. Procura às apalpadelas o cachimbo que deixou, de fornilho atascado de tabaco ardido, no peitoril da janela.

Sem comentários: