É para mim o sítio mais triste da cidade de Lisboa. Quem sai dos Armazéns do Chiado e começa a subir a Rua Garrett não dá pelo painel que ornamenta a esquina da Calçada do Sacramento, a primeira à direita. Mas ele lá está, há anos, o painel da Antiga Casa José Alexandre, parece que vendia artigos domésticos, loiças, cutelaria e trens de cozinha, mas foi-se o comércio no fogo de 1988 e deixou a assinatura no ferro do Chiado.
Agora o painel é um brazão da cidade que foi, carbon copy da cidade que é, e o retrato da cidade que teremos se a deixarmos entregue aos bandidos. O painel de metal abraça a esquina, parece beijar os cotovelos da rua, e pedir clemência; continua a dizer “Antiga Loja José Alexandre Lta” a quem reconhecer o nome do antigo Chiado no silêncio, mas é difícil soletrar a assinatura de renome por debaixo do graffiti que entretanto a malta mais atrevida desenhou.
Os artistas de rua agora são uns bandidos, ou são os bandidos de rua que são artistas, já não tenho bem a certeza. Mas não basta pintar na parede, destrói-se o património, tinta sobre o painel que sobrevive da Antiga Casa José Alexandre na esquina da Garrett com a Calçada de Sacramento. Alguém contesta? Como poderia. A arte de rua não é ilegal, os fricolés pedem moedinha e atiram archotes ao ar, o cheiro intenso a querosene não inflama, eles só querem alimentar o cão ou carregar o telemóvel com mais 15 euros. De quem é a culpa?
Do outro lado da rua colam-se posters a preceito, palimpsestos anunciando concertos de bandas góticas da margem sul, peças de teatro universitário ou queima das fitas, festas de trazer por casa, modas que passaram de moda. As paredes e os passeios de Lisboa são de todos menos de Lisboa, mas ao menos são livros abertos para escárnio e mal-dizer, para se pintar ou apenas desenhar em urina, estes pequenos golpes em surdina de uma cidade livre onde as paredes e os painéis são como urinóis de Duchamps ou bigodes de Mona Lisa, nunca saberemos ver a diferença entre o lixo e o luxo, e onde fazer quando estamos aflitinhos, é uma verdadeira aflição. E entretanto a placa da José Alexandre já não tem leitura, mas sobrevive implacável à esquina a cantar o solidó, ou a canção do ceguinho, por debaixo de um grafitti virtuoso, pintado pela vergonha e a dormência da cidade, ou de quem gostaria de mandar nela.
O que fazer? Eu não mando, só mando postas de pescada. Mas cada vez que ali passo, lamento a chave de fendas que não tenho e a iniciativa que me falta para salvar o painel da miséria, da chuva miudinha e do abandono mesquinho, antes que se faça tarde e venha o Natal, ou alguém tenha uma melhor ideia, e uma chave que solte o mártir da parede. Eu gostaria de ser homem para todas as temporadas, mas tenho medo do que se esconde por detrás do painel da Antiga Casa José Alexandre, “fundada em 1823”. Sei que por detrás do painel não há nada, e o nada assusta-me tanto como a morte. Por isso é que só mencionei a parte da frente. A parte da frente tem tinta e autocolantes, mas é o painel que parece estar a mais.
Miguel Somsen
1 comentário:
Para mim é mais triste os sem-abrigos a comer a única refeição do dia aos pés das milionárias da joalharia, ou as duas faixas para automóveis + lugar de estacionamento junto ao passeio que me apertam em passeios estreitos contra as paredes e não me deixam passear lado-a-lado com a minha moça, mas adiante...
o que queria mesmo dizer era que nunca vi um desses "fricolés" que animam as ruas com fogo a sujar uma parede com grafitis. pelo contrário, os "bombers" que vejo têm em geral aspecto de descendentes das previamente referidas senhoras das joalharias.
queria deixar a adenda ao que me preconceito injustificado. obrigado.
ps: passo na rua garret e vejo neon de bancos, manequins literalmente a foder, todos ultra-iluminados, todos a chamarem os meus olhos, a forçarem a minha vista para lá. olhe para aqui, compre isto. e nem reparo nas bonitas placas antigas sujas pelos horríveis (mas não luminosos) grafitis.
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