terça-feira, novembro 27, 2007

Os dois lados

No que diz respeito ao Novo Aeroporto de Lisboa há dois obstáculos a uma posição: a intrínseca complexidade do assunto e a brevidade da vida humana.

Protágoras de Abdera. Viveu pouco após o ano 500 a.C. e era um dos sofistas que tanto exasperava Sócrates. “Um pronto-a-confundir”, diz-se num diálogo socrático, “conhece todos os truques dos debates”. Ficou conhecido principalmente por ter dito que “o homem é a medida de todas as coisas”. Se pensarmos bem, é uma frase incompleta. Deveria ser: “para o homem, o homem é a medida de todas as coisas”.

É uma coisa extraordinária a mania de encontrar sempre um primeiro para tudo. Pois então vejam esta. Segundo a tradição, Protágoras de Abdera foi o primeiro a declarar que há sempre dois lados em cada questão. Devemos-lhe algo ao repetir diariamente essa frase.

Dois exemplos. Quando disse que “o homem é a medida de todas as coisas”, Protágoras acrescentou: “tanto das coisas que são o que são, como das coisas que não são o que não são”. Um dia esticou-se mais do que deveria e levou o raciocínio até à existência dos deuses: “no que diz respeito aos deuses, não estou em posição de saber se existem, ou se não existem; pois são muitos os obstáculos à obtenção de tal conhecimento, em particular a complexidade intrínseca do tema e a brevidade da vida humana”. Os atenienses não gostaram desta posição (e também, naturalmente, não-posição). Expulsaram Protágoras da cidade e queimaram todos os seus livros na Ágora.

***

No que diz respeito ao Novo Aeroporto de Lisboa há também dois obstáculos a uma posição. Por sinal são os mesmos: a intrínseca complexidade do assunto e a brevidade da vida humana. Tenho evitado pronunciar-me, uma vez que não sou especialista em aeroportos. No entanto, olho em torno, e o que vejo? Sou tão especialista em aeroportos como qualquer outro (e por vezes sinto-me tentado a dar o meu voto a Badajoz: desde que o aborto foi despenalizado que esta cidade espanhola perdeu o seu papel como quebra-gralho dos quebra-cabeças nacionais).

Aqui há uns tempos chegou o célebre estudo da Confederação da Indústria Portuguesa que defendia que o novo aeroporto deveria localizar-se em Alcochete. Para os adversários da Ota, este estudo é o novíssimo testamento onde todos os defeitos da Ota são lionizados e todos os defeitos de Alcochete são irrelevantes. E o mesmo vale para os defeitos dos próprios estudos. Não tem qualquer importância que o mesmo estudo que defende que toda a minha gente de Cascais, de Sintra, de Lisboa e da margem direita do Tejo atravesse o rio para chegar ao aeroporto tenha como um dos financiadores a empresa que detém o monopólio das pontes sobre esse rio. Mas é considerado muito preocupante que o governo tenha encomendado um outro estudo a uma entidade pública porque as entidades públicas estão sob, enfim, a tutela do governo.

Noticiou-se agora que um pássaro chamado Maçarico-de-Bico-Direito migra pelo estuário do Tejo em grandes bandos. Muitos viram esse facto como uma terrível manobra, quiçá dos ecologistas, para deter o progresso. Parece porém que a preocupação não é tanto com a extinção dessa espécie, mas com a segurança dos aviões. Esperemos pelo desenlace. A questão é decisiva, sobretudo como resposta a Protágoras: saber se o Homem é mais medida de todas as coisas do que, por exemplo, o Maçarico-de-Bico-Direito.


Rui Tavares

In Público

4 comentários:

Anónimo disse...

Felizmente que na Ota não se põem questões ambientais nem há montanhas a deitar abaixo nem nevoeiros e se pode ampliar o aeroporto, que lá sai muito mais barato.

Anónimo disse...

Olha-m'estes, ainda agora argumentavam que a Portela não estava saturada e agora estão já preocupados com, vejam só, a AMPLIAÇÃO do Novo Aeroporto (que, entretanto, continua por fazer)?!...

Anónimo disse...

Não vale a pena insistir na tecla dos custos do novo Aeroporto. Toda a gente já sabe que um Aeroporto não é uma fralda, nem um penso higiénico, e que os custos alternativos que interessa comparar NÃO são simplesmente os da construção.


Qualquer abordagem séria a este assunto terá de levar em conta o somatório dos custos de construção com os da EXPLORAÇÃO mais, obviamente, todas as EXTERNALIDADES inerentes ao funcionamento.


Às quais não será nada estranha a distribuição espacial da procura para o tráfego aéreo...


Mas enfim, para os detractores da Ota nada disso interessa, pois a sua argumentação já passou do nível racional para o (politicamente) metafísico...

Anónimo disse...

Pena é que os verdadeiros "especialistas" se tenham deixado enredar na armadilha dos seus próprios interesses e tenham perdido todo o crédito de que disfrutavam.


Agora vai ser muito dífícil recuperarem-no...