UMA TRAGÉDIA À ESPERA DE ACONTECER
Por Manuel João Ramos
Por Manuel João Ramos
“Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”
Chico Buarque de Holanda
FRENTE À ESTAÇÃO FLUVIAL do Terreiro do Paço, deu-se há três dias um atropelamento trágico e revoltante.
Três pessoas foram varridas por uma automobilista que fazia o que muitos outros fazem, todos os dias, em muitos locais de Lisboa: circulava em excesso de velocidade. Aparentemente, não acusava álcool no sangue, nem traço de drogas. O carro descontrolou-se, porque talvez ela se tenha distraído por um momento: acendia um cigarro, ligava o rádio, mudava o CD. Ou talvez viesse simplesmente a falar ao telemóvel. Como muitos outros automobilistas fazem. Todos os dias.
As três vítimas – Filipa, Neuza e Rufina – estavam no local errado, à hora errada? Sim, porque o local está todo errado, e porque a hora era a do fim do divertimento de uns e do princípio do trabalho para outros. O lusco-fusco...
Aqui – de forma brutal e chocante – confrontaram-se porventura dois Portugais: o dos automóveis e das vias rápidas, do conforto e dos sonhos das frentes ribeirinhas e dos divertimentos nocturnos; e o dos trabalhadores desprotegidos que, em silêncio humilde, calcorreiam as ruas, usam os transportes públicos, e procuram sobreviver numa cidade que os ignora, hostiliza, espezinha.
Há uma quarta vítima – aquela que é simultaneamente a autora material do homicídio. A automobilista. A tal que fazia aquilo que muitos – muitos, mesmo – fazem todos os dias. Circulava em excesso de velocidade. Vinha por uma via rápida, a Av. Infante Dom Henrique, que repentinamente se transforma – neste local – em lugar pitoresco, histórico, patrimonial, e, também, espaço de passagem da massa anónima que vem da outra margem do rio limpar os escritórios afluentes da Avenida da Liberdade.
A cidade dos carros burgueses e das vias rápidas está separada por um véu da Lisboa dos peões pobres e das ruas perigosas. Por vezes esse véu rompe-se, e os mundos encontram-se. E quando se encontram, é frequente que o resultado seja a violação dos direitos mais fundamentais dos cidadãos que andam a pé: o direito à segurança, o direito à dignidade, e o direito à vida.
A tragédia que ali ocorreu foi, afinal, apenas mais um rompimento desse véu. Como o vereador do trânsito da Câmara de Lisboa lembrou já, o véu vai ser reparado, e tudo será como dantes – com mais umas lombas, mais uns segundos nos semáforos, mais um lancil e uns metros de calçada.
A tragédia maior que nos afecta a todos, e não apenas às vítimas directas, é termos olhado para o horror desta segregação, e para a nossa fragilidade fundamental de seres humanos quando não estamos protegidos por uma armadura automóvel.
Uma familiar das vítimas desfaleceu quando viu os corpos desmembrados; a autora material do crime ficou em estado de choque. Mas há um parceiro silencioso neste crime: é aquele que achou que este local fazia sentido, que não está errado, e que, por omissão, criou as condições do homicídio.
O parceiro silencioso deste crime licenciou espaços de diversão nocturnos e fez com que uma via rápida ribeirinha desembocasse nas obras mais vergonhosas do regime, e numa das passadeiras mais tenebrosas de Portugal. Deixou que o pavimento de alcatrão se deformasse, criou um falso refúgio de peões a meio de uma curva perigosa. E ficou à espera de que alguém caísse na armadilha.
Ficará de novo impune o parceiro silencioso deste crime?
(Isabel G)
9 comentários:
Manuel João Ramos também publicou este texto no blogue onde escreve [aqui], tendo recebido uma quantidade razoável de comentários - alguns deles de teor verdadeiramente inesperado...
Medina Ribeiro
O link para o sorumbático está lá em cima no título do texto.
ISABEL
Acabei de encontrar isto:
--
In Portugal muss man mit 2,5 m/Sekunde bei Grün über die Straße rennen
4 hours ago
und so kommt es eben halt, wenn man lahm oder fußkrank ist, daß man das andere Straßenufer zu spät erreicht und.... ein Auto mit bloß 80 km/h kommt mit 22,2 meter/pro Sekunde näher : wie neulich in Lissabon sorumbatico: UMA TRAGEDIA A ESPERA DE ACONTECER (ein sehr fairer Kommentar!) die Verantwortlichen wissen nicht was sie machen sollen: Es fehlen Bücher mit Vorschriften oder Verhaltensregeln !
ISABEL,
OK, só quis chamar a atenção para os comentários que lá estão.
Vale a pena ler alguns, que fogem um pouco ao "politicamente correcto".
Sim, Medina Ribeiro.
Percebi a sua intenção.
Já estive a ler
ISABEL
Claro. Até que a população de Lisboa exija do Parlamento uma nova legislação que obrigue as Autarquias a respeitar regras técnicas sobre esta matéria.
Afinal, a circulação rodoviária é assim tão menos importante do que a Arquitectura, onde tudo está já regulamentado ao centímetro (dimensões de janelas, casas-de-banho, escadas, etc. etc.)??!!!
Numa cidade (ou até mesmo numa aldeia!) a circulação rodoviária tem de existir, bem assim como a circulação de peões.
Para ambos há regras a respeitar, e, nos locais de possível "conflito" (onde podem circular ambos, nomeadamente em passadeiras), também - e com maioria de razão:
Localização em quantidade, tempos adequados para atravessamento, respeito pelos sinais, etc - são o melhor remédio para evitar os suicídios e os homicícios.
Uma boa campanha de esclarecimento para peões (com ou sem multas - aliás previstas na lei) também já tarda, e salvaria vidas:
Ontem, ao meio-dia, pude ver um casal de velhinhos (ela, de canadianas) a atravessar a Av. da República, com toda a calma, a 20 metros de uma passadeira, que ignoraram olimpicamente.
Se pessoas como essas não se dispõem a ajudar-se a si mesmas, não haverá "velocidade máxima" que lhes valha, e discutir coisas como a velocidade de atropelamento aceitável é um exercício sem grande futuro...
Bem, sem grande futuro só se for em Portugal, que é de facto um País muito "sui generis"...
A realidade, concreta e mensurável (não a que se vende nas tabacarias em forma de jornais ou mais tarde, nas nossas caixinhas, em forma de tele-jornais), é contudo outra: em todos os Países europeus, desde a Irlanda à Grécia, passando por sítios de características tão semelhantes às nossas como o Sul de Itália, os números da acidentologia rodoviária DENTRO DOS AGLOMERADOS URBANOS não se comparam aos nossos e uma das razões principais, pode o C. Medina Ribeiro acreditar, é precisamente a baixa velocidade a que, de um modo geral, se circula dentro das suas Cidades, em particular nas artérias de caraterísticas urbanas, que vão desde as grandes avenidas aos becos e vielas.
A alta velocidade de circulação neste tipo de vias é, de longe, segundo todos os especialistas, a principal causa da GRAVIDADE DAS CONSEQUÊNCIAS dos acidentes que ocorrem dentro das Cidades, onde pontificam naturalmente os ATROPELAMENTOS.
Ou seja, circular a 100 km/h no Eixo N-S, ou na Radial de Benfica, NÃO É TÃO GRAVE como circular, por exemplo, a 60 km/h na Rua Áurea, ou na Av. Pedro Álvares Cabral! É aqui sobretudo, nas grandes artérias urbanas, que terão de ser criadas condições objectivas para que seja mesmo impossível exceder certos limites de velocidade, que podem ser considerados como os PATAMARES TÉCNICOS DO ASSASSÍNIO OU DO SUICÍDIO RODOVIÁRIO!
Até porque, na maior parte do tempo, estas são vias altamente congestionadas, onde se escoam elevadíssimos volumes de tráfego em condições de velocidade média relativamente reduzida, dada a sua alta capacidade viária. A qual conduz, por sua vez, à criação de condições anormalmente favoráveis à prática de velocidades excessivas nas chamadas "horas mortas", em que a oferta de capacidade é largamente excendentária para a procura de tráfego.
Caso mais emblemático em Lisboa: precisamente a Av. INFANTE D. HENRIQUE, onde se deu o trágico atropelamento!
Significativamente, lembro-me de ter já ouvido do Presidente da Câmara, Ant.º Costa, ainda enquanto candidato, uma proposta muito interessante, louvável e inovadora quanto a esta artéria (pejada de passadeiras "assassinas", não semaforizadas!), precisamente para contrariar esta sua disfunção: reduzir o número de vias de circulação para 2 + 2 fora dos "períodos de ponta"! Recordam-se?
Pois agora, mais do que nunca, justifica-se plenamente avançar com tais medidas, nesta como noutras artérias que padeçam do mesmo síndroma: Av. Dr. Alfredo Bensaúde (sim, a das corridas nocturnas, claro...), Av. Fontes Pereira de Melo, Av. da Liberdade, Av. 24 de Julho e Av. Almirante Gago Coutinho - todas constituídas por longos troços rectos, que são do mais perigoso que pode haver, em termos de circulação nocturna (por isso mesmo estão proibidos na maior parte das nossas auto-estradas).
Senhor Vereador do Trânsito, senhores técnicos e dirigentes da C. M. L. desta área, vamos deitar mãos à obra?
Bem, sem grande futuro só se for em Portugal, que é de facto um País muito "sui generis"...
A realidade, concreta e mensurável (não a que se vende nas tabacarias em forma de jornais ou mais tarde, nas nossas caixinhas, em forma de tele-jornais), é contudo outra: em todos os Países europeus, desde a Irlanda à Grécia, passando por sítios de características tão semelhantes às nossas como o Sul de Itália, os números da acidentologia rodoviária DENTRO DOS AGLOMERADOS URBANOS não se comparam aos nossos e uma das razões principais, pode o C. Medina Ribeiro acreditar, é precisamente a baixa velocidade a que, de um modo geral, se circula dentro das suas Cidades, em particular nas artérias de caraterísticas urbanas, que vão desde as grandes avenidas aos becos e vielas.
A alta velocidade de circulação neste tipo de vias é, de longe, segundo todos os especialistas, a principal causa da GRAVIDADE DAS CONSEQUÊNCIAS dos acidentes que ocorrem dentro das Cidades, onde pontificam naturalmente os ATROPELAMENTOS.
Ou seja, circular a 100 km/h no Eixo N-S, ou na Radial de Benfica, NÃO É TÃO GRAVE como circular, por exemplo, a 60 km/h na Rua Áurea, ou na Av. Pedro Álvares Cabral! É aqui sobretudo, nas grandes artérias urbanas, que terão de ser criadas condições objectivas para que seja mesmo impossível exceder certos limites de velocidade, que podem ser considerados como os PATAMARES TÉCNICOS DO ASSASSÍNIO OU DO SUICÍDIO RODOVIÁRIO!
Até porque, na maior parte do tempo, estas são vias altamente congestionadas, onde se escoam elevadíssimos volumes de tráfego em condições de velocidade média relativamente reduzida, dada a sua alta capacidade viária. A qual conduz, por sua vez, à criação de condições anormalmente favoráveis à prática de velocidades excessivas nas chamadas "horas mortas", em que a oferta de capacidade é largamente excendentária para a procura de tráfego.
Caso mais emblemático em Lisboa: precisamente a Av. INFANTE D. HENRIQUE, onde se deu o trágico atropelamento!
Significativamente, lembro-me de ter já ouvido do Presidente da Câmara, Ant.º Costa, ainda enquanto candidato, uma proposta muito interessante, louvável e inovadora quanto a esta artéria (pejada de passadeiras "assassinas", não semaforizadas!), precisamente para contrariar esta sua disfunção: reduzir o número de vias de circulação para 2 + 2 fora dos "períodos de ponta"! Recordam-se?
Pois agora, mais do que nunca, justifica-se plenamente avançar com tais medidas, nesta como noutras artérias que padeçam do mesmo síndroma: Av. Dr. Alfredo Bensaúde (sim, a das corridas nocturnas, claro...), Av. Fontes Pereira de Melo, Av. da Liberdade, Av. 24 de Julho e Av. Almirante Gago Coutinho - todas constituídas por longos troços rectos, que são do mais perigoso que pode haver, em termos de circulação nocturna (por isso mesmo estão proibidos na maior parte das nossas auto-estradas).
Senhor Vereador do Trânsito, senhores técnicos e dirigentes da C. M. L. desta área, vamos deitar mãos à obra?
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