DESCULPEM-ME A REPETIÇÃO, MAS...
Eurico de Barros
Não gosto de me banhar duas vezes no mesmo rio das crónicas, mas tenho que voltar hoje aos sinaleiros da semana passada. Passa-se que um camarada de redacção, rapaz aproximadamente da minha faixa etária, que tem a paciência de passar os olhos pelo que eu deixo escrito neste canto todos os sábados, leu a minha homenagem nostálgica aos cabeças de giz que punham ordem no trânsito em Lisboa nas décadas de 50 a 70, e veio dizer-me: "E as peanhas? Esqueceste-te das peanhas!"
Pois é. É verdade. Incrível e indesculpavelmente, esqueci-me das peanhas. As peanhas eram umas plataformas pequeninas de madeira, em que os sinaleiros se empoleiravam para estarem acima da circulação e ficarem em posição de autoridade face ao tráfico automóvel. E eram também os minúsculos palcos onde os mais dados às movimentações exuberantes executavam as suas coreografias orientadoras da circulação, com a respectiva banda sonora de apitadelas, afirmativas e autoritárias.
O sinaleiro "bailarino" que estava postado junto ao Liceu Camões até conseguia controlar os peões recorrendo apenas ao apito, tamanha era a sua capacidade de intimidação sonora. Andava tudo na linha, sobretudo a miudagem que saía de cambulhada do liceu, ansiosa por se pôr a milhas do local. Mas uma simples apitadela do "bailarino" tinha sobre nós um efeito pavloviano: ficávamos instantaneamente parados à beira da rua que nos preparávamos para atravessar em caos.
Inconscientes como éramos então, nunca nos devemos ter dado conta das vezes que o apito mais certeiro de Lisboa nos protegeu de automóveis, camionetas e motos com que podíamos ter coincidido em trajectórias. O meu muito obrigado, onde quer que esteja.
Na sexta-feira, perto do CCB, vi um sinaleiro. Sim, afinal ainda existem. Não estava a controlar a circulação, mas sim a gozar da sombra das árvores do jardim de Belém. Usava o clássico capacete "cabeça de giz" e as luvas brancas. Só faltava mesmo a peanha para se empoleirar e começar o espectáculo de comando do trânsito.
Além dos sinaleiros, também os táxis verdes e pretos, os eléctricos amarelos e os autocarros verdes de um e de dois andares (com porta "ventilada" atrás, ou então aberta de dentro à frente) fazem também parte indissolúvel do meu imaginário de alfacinha com cartão de sócio tirado à nascença.
Destes, restam apenas alguns táxis que ainda não aderiram ao monótono uniforme bege de hoje, e uns quantos eléctricos que circulam por aí. Os outros, ficaram guardados para a posteridade no cinema. Os táxis, por exemplo, estão conservados em Rapazes de Táxis, de Constantino Esteves, com Tony de Matos e António Calvário no papel de dois dos ditos, ainda de boné regulamentar na cabeça. E os eléctricos e os autocarros nos documentários Lisboa de Ontem e de Amanhã, de António Lopes Ribeiro, e em As Rodas de Lisboa, deste e do seu irmão Ribeirinho. E agora, toca a circular.
EURICO DE BARROS-DN
Eurico de Barros
Não gosto de me banhar duas vezes no mesmo rio das crónicas, mas tenho que voltar hoje aos sinaleiros da semana passada. Passa-se que um camarada de redacção, rapaz aproximadamente da minha faixa etária, que tem a paciência de passar os olhos pelo que eu deixo escrito neste canto todos os sábados, leu a minha homenagem nostálgica aos cabeças de giz que punham ordem no trânsito em Lisboa nas décadas de 50 a 70, e veio dizer-me: "E as peanhas? Esqueceste-te das peanhas!"
Pois é. É verdade. Incrível e indesculpavelmente, esqueci-me das peanhas. As peanhas eram umas plataformas pequeninas de madeira, em que os sinaleiros se empoleiravam para estarem acima da circulação e ficarem em posição de autoridade face ao tráfico automóvel. E eram também os minúsculos palcos onde os mais dados às movimentações exuberantes executavam as suas coreografias orientadoras da circulação, com a respectiva banda sonora de apitadelas, afirmativas e autoritárias.
O sinaleiro "bailarino" que estava postado junto ao Liceu Camões até conseguia controlar os peões recorrendo apenas ao apito, tamanha era a sua capacidade de intimidação sonora. Andava tudo na linha, sobretudo a miudagem que saía de cambulhada do liceu, ansiosa por se pôr a milhas do local. Mas uma simples apitadela do "bailarino" tinha sobre nós um efeito pavloviano: ficávamos instantaneamente parados à beira da rua que nos preparávamos para atravessar em caos.
Inconscientes como éramos então, nunca nos devemos ter dado conta das vezes que o apito mais certeiro de Lisboa nos protegeu de automóveis, camionetas e motos com que podíamos ter coincidido em trajectórias. O meu muito obrigado, onde quer que esteja.
Na sexta-feira, perto do CCB, vi um sinaleiro. Sim, afinal ainda existem. Não estava a controlar a circulação, mas sim a gozar da sombra das árvores do jardim de Belém. Usava o clássico capacete "cabeça de giz" e as luvas brancas. Só faltava mesmo a peanha para se empoleirar e começar o espectáculo de comando do trânsito.
Além dos sinaleiros, também os táxis verdes e pretos, os eléctricos amarelos e os autocarros verdes de um e de dois andares (com porta "ventilada" atrás, ou então aberta de dentro à frente) fazem também parte indissolúvel do meu imaginário de alfacinha com cartão de sócio tirado à nascença.
Destes, restam apenas alguns táxis que ainda não aderiram ao monótono uniforme bege de hoje, e uns quantos eléctricos que circulam por aí. Os outros, ficaram guardados para a posteridade no cinema. Os táxis, por exemplo, estão conservados em Rapazes de Táxis, de Constantino Esteves, com Tony de Matos e António Calvário no papel de dois dos ditos, ainda de boné regulamentar na cabeça. E os eléctricos e os autocarros nos documentários Lisboa de Ontem e de Amanhã, de António Lopes Ribeiro, e em As Rodas de Lisboa, deste e do seu irmão Ribeirinho. E agora, toca a circular.
EURICO DE BARROS-DN
Fotog: Arquivo Municipal de Lisboa
Sem comentários:
Enviar um comentário