quinta-feira, abril 16, 2009

"…Mas as crianças, Senhor…"

A sociedade portuguesa perdeu, há muito, a noção de valores e tripudiou sobre as regras de convivência. Lenta mas inexorável uma endemia de dissolução alastrou, de tal forma, que põe em causa a própria razão do ser individual. Abandonámos um conceito de destino e desinteressámo-nos da ideia de futuro, se alguma vez a ambos tivemos. Antero e Oliveira Martins disseram que não. Causticámo-los com o ferrete de cépticos. Desprezámo-los quando devíamos tê-los estudado. A República animou-nos, mas a festa durou pouco. Meio século de cantochão, bota cardada, medos vários, foram as insígnias das nossas obediências. No Abril antigo, o bandolim pareceu tocar a nossa música. Pregámos um susto às bem-pensâncias, andámos a lavar as ruas, a oferecer à pátria um dia de salário e a gritar um estribilho que fora funesto no Chile: "O povo unido jamais será vencido!" Pois sim!

Fui um daqueles que deitou foguetes. E ainda me resta uma pequena fagulha, apesar de o desemprego correr a galope, de os nossos velhos morrerem nos jardins, e de termos atingido, agora, a abjecção com o que fazemos aos nossos miúdos: abandonamo-los, enchemo-los de miséria, de fome e de morte por extinção moral.

Anteontem, os jornais alargaram-se em notícias sobre estes sacrilégios. Porque há pais que abandonam os filhos? Que desespero incontido pode levar alguém a deixar uma criança à bússola do acaso? E que bizarro mecanismo mental encaminha progenitores a não dar de comer aos seus miúdos, mas a adquirir-lhes roupas de marca? Pensemos duas vezes.

A família tem cada vez mais dificuldade em se representar. Mas foi a família que se não opôs às imposições de uma sociedade, cuja inconsistência transformou o secundário em primordial. O desprezo pelos miúdos conduz a conflitos profundos com as suas personalidades. Porém, o Estado abandonou os pais, e os pais deixaram de se interessar, no essencial, pelos filhos. O círculo ainda não encerrou. E as notícias a que me refiro advertem da existência de uma compressão da época e de um mal da alma, resumidos nesta frase medonha: "Não tenho tempo a perder."

Não temos tempo a perder com quem? Com os nossos filhos? Com os outros? Connosco próprios? Estamos a encurtar tudo (a vida, o amor, a amizade, o ócio) com melancólica leviandade. "Às duas por três nascemos/às duas por três morremos/e a vida?/não a vivemos" - ensinou Alexandre O'Neill. Nunca ouvimos os poetas.

Não há unidade nem absoluto possível se não conseguirmos travar a marcha de um sistema doente, cuja natureza se opõe à partilha, e tem destruído e aniquilado o melhor dos nossos sentimentos e emoções.



In Diário de Notícias

3 comentários:

Anónimo disse...

"Fui um daqueles que deitou foguetes" ou "Fui um daqueles que DEITARAM foguetes"?


Ai, ai...

J A disse...

....mas vale a pena pensar um bocadinho, porque estamos a nadar sem pé...e muito longe da costa.

Paralaxe disse...

Face to face
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I don’t carry two faces under one wood
And now, that we are here face to face,
My saying must be well understood,
Should you want to follow, and keep the pace.

I put a good face on, facing dangers,
And put a bold face in it, since I born;
But near relatives, or even strangers,
Hardly ever I pulled a face, or became stubborn…

You keep a straight face, a whithering look,
When I make a face, facing tasteless paps;
When I beg for a toy, or a colored book,
You set your face against, and give me snaps.

You have the face to say, my dear grown
“The best in the world are the children”;
But you fly in the face of “skin and bone”,
That will drop down dead, and you will drain.

I don’t face out a lie, you are not as it seems;
I laugh in your face, not listening your pray;
Let me lie down and rest, sleep, have dreams,
Wondering for a future, and a better world to stay.

Right face!, dismiss!, face the music!…
Look facts in the face: your choice is the trick
For a hell of a noise, carrying a tripod,
Or a sweet melody, in the face of God.

Jamor Pastora