quinta-feira, agosto 05, 2010

Toma e embrulha

Já foi o tempo em que as lojas concorriam entre si, fosse onde fosse, para juntar o útil ao agradável ao consumidor, que é como quem diz, concorriam por forma a que aquele se lhes fidelizasse e não zarpasse à loja do vizinho do lado. Nesses tempos, entre muitas outras coisas, primava-se pelo requinte no papel de embrulho, ao tacto e à vista, no esmero e virtuosismo do laço, até mesmo no feitio da caixa e no logótipo nela impresso. Não havia brinquedo, perfume, sapato ou camisa, para falar do mais evidente e sem referir os artigos de pastelaria; que não tivesse um embrulho atractivo a formalizar a compra, em caixa ou caixinha bem composta, e respectivo papel de seda envolvendo o artigo comprado. Por vezes, e não tão poucas vezes assim, o embrulho era mil vezes superior àquilo que embrulhava. E não se tratava de especial favor pela compra derivar de feliz aniversário, de acontecimento memorável ou da perspectiva de vir a sê-lo. Na altura não se usava o termo, mas tratava-se de um efectivo e real atendimento personalizado.

Hoje, não só isso é cada vez mais impossível, como tende a não existir de todo, até naquelas circunstâncias especiais em que o vendedor indaga, robotizado, “é para oferta?”. Hoje, tudo é nivelado por baixo. Talvez por força da famosa crise, que a bem dizer nunca deixou de existir, se por desleixo e desaprumo da “cadeia de valor”, se por culpa do consumidor, hoje, é tido é sabido que ao fazer-se uma compra, seja onde for e em que circunstância for, o “embrulho” é sempre o mesmo: enfiam com o artigo saco de papel (o plástico é politicamente incorrecto) abaixo e zás, leva com dois agrafos junto à pega e toca a andar. Por vezes rematam com outra das frases habituais, “quem está a seguir?”. Se for dia de festa, então, com sorte, pode ser que quem esteja do lado de lá do balcão aceda a colar um daqueles autocolantes pindéricos fazendo publicidade ao estabelecimento; quiçá, mesmo, em caso de prenda para menino ou menina, haja direito a chupa-chupa ou etiqueta linda colada ao saco.

Certo, certo, é que a caixa desapareceu, tal qual o laço. Igual sorte para o papel de seda, o cetim, o logo desenhado a preceito. Mesmo nas sapatarias, de renome ou não, é comum ver-se o vendedor enfiar os ditos saco abaixo, nus e enxovalhados. Só se o cliente fizer questão é que lhe darão a caixa, que, diga-se de passagem, também já não é o que era. Lá virá o dia, portanto, e não será assim tão longe como se pensa, em que ao comprar-se determinada prenda, referindo expressamente que é para oferta, ouvir-se-á ao vendedor o que se ouvia na Primária, perdão, no Ensino Básico, a algum colega mais traquina, quando apanhava o colega de carteira de surpresa, geralmente desagradável, ou em contra-pé: “ai é? ora toma e embrulha”.





In Jornal de Notícias (20/7/2010)

1 comentário:

Julio Amorim disse...

....e tenho a certezinha absoluta que existe um mercado para este tipo de atendimento.