Quem o diz é Augusto Mateus, antigo ministro da Economia, investigador universitário e um dos autores do estudo que pretende lançar as bases para um novo modelo de governação do concelho de Lisboa. O documento propõe um novo mapa de freguesias, reduzindo as actuais 53 para cerca de metade. A discussão está instalada, mas deve ir além da questão das freguesias, alerta por seu lado João Seixas, co-autor do estudo.
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João Seixas tira de dentro da mochila um mapa velhinho. O investigador do Instituto de Ciências Sociais colecciona cartografia de Lisboa, e este foi um amigo que sabia da sua mania e lho arranjou. "Não estamos a falar de vacas sagradas", assegura, a propósito do mais recente trabalho que desenvolveu a pedido da Câmara de Lisboa, com o economista Augusto Mateus, para lançar as bases de um novo modelo de governação da capital.
A prevista redução do número de freguesias para metade fez ir aos arames alguns políticos da cidade, ciosos das fronteiras do seu bairro e receosos das consequências eleitorais desta reforma. Mas os objectivos dos autores do estudo, que tem a chancela do Instituto Superior de Economia e Gestão e do Instituto de Ciências Sociais, ultrapassam em muito a mera alteração das divisões administrativas. A dupla não faz por menos: quer revolucionar a forma de governo da metrópole, sob pena de Lisboa comprometer de forma irreversível o seu futuro.Avô pela primeira vez no passado dia 11 de Outubro, o ex-ministro da Economia de António Guterres (PS) recebeu em cima do acontecimento um bizarro sms de felicitações pelo nascimento de Nicolau: "Então vais acabar com a freguesia do teu neto?!" Acaloradas, algumas destas reacções têm-se repetido aqui e acolá. Os autarcas do Lumiar repudiaram energicamente a integração de parte do seu território na futura freguesia de Telheiras, que consideram "um absurdo histórico e geográfico".
Os autores do estudo propõem a junção de freguesias mais pequenas e a divisão das unidades de maior dimensão. São Nicolau, por exemplo, tem 1200 habitantes, e nem sequer é a freguesia mais pequena da cidade, enquanto os Olivais contam com mais de 46 mil. "É maior do que o conjunto dos municípios de Castelo Branco e Vila Velha de Ródão", observa Augusto Mateus. "Não podemos governar grandes concentrações urbanas da mesma forma que governamos pólos rurais. Não posso ter uma freguesia com menos de 400 habitantes com as mesmas regras de uma com mais 60 mil."
O pote de dinheiro
A falta de escala do actual mapa das freguesias de Lisboa tem custos inconciliáveis com o actual cenário económico: "Os portugueses em geral não pensam na eficiência económica. Acham que existe algures um pote de dinheiro, como na aldeia dos gauleses de Astérix, a que é só deitar a mão. Pensam que a riqueza já foi toda produzida [por alguém antes deles]", ironiza o economista. "Temos de ser razoavelmente implacáveis: hoje o principal problema do país é o endividamento externo e o equilíbrio das contas públicas. Não podemos efectuar reformas sem preocupações de sustentabilidade económica.
As freguesias foram definidas num tempo que nada tem a ver com aquele em que vivemos."João Seixas dá como exemplo a gestão de um equipamento cultural e desportivo. Se for de grandes dimensões, faz todo o sentido ficar a cargo dos serviços centrais da câmara. Se for mais pequeno, não: "Ora uma freguesia com menos de 400 habitantes [como existem na Baixa] não tem estrutura nem massa crítica para gerir um equipamento cultural de pequena ou média dimensão. Ou uma escola." A descentralização de competências, da administração central para as câmaras, por um lado, e destas para as juntas, por outro, é uma das pedras-de-toque da proposta de João Seixas e Augusto Mateus. Por outro lado, a dupla defende que a Câmara de Lisboa crie nove pólos territoriais que permitam aos habitantes resolver os seus problemas sem recorrer aos serviços centrais burocratizados. Uma espécie de delegações na dependência dos vereadores, que ficam com a obrigação de traçar políticas diferenciadas para cada um destes territórios.
Augusto Mateus dá o exemplo de Chelas, que conhece bem: "Se a câmara já estivesse a funcionar desta forma, não teríamos um bairro assim. Além das casas, haveria pólos de emprego, serviços..." E integração social, claro. "Se houver em Chelas uma unidade de gestão com competências e responsabilidades em diferentes áreas e uma estratégia concreta para este território, consegue-se o seu desenvolvimento económico - e não apenas realojamento." É que, apesar de apontar novas formas de governação em vez de políticas concretas, o estudo tem como objectivo "fazer uma cidade de primeira para toda a gente". Afinal, algo de errado se passa quando um terço dos habitantes da capital de um país "corresponde a pessoas associadas a operações de realojamento, que não têm acesso a condições de qualidade de vida e oportunidades que deviam ter". São problemas de coesão social "que não podem ser enfrentados numa lógica caritativa, mas sim de alteração do modelo de desenvolvimento".
Augusto Mateus prossegue: "O problema de coesão de uma freguesia é o mau governo, e não o de ter a sua fronteira cem metros mais para a esquerda ou para a direita. Toda a gente reconhece diferenças entre o bairro da Graça, de Campo de Ourique ou da Lapa. Mas não deve haver diferenças no seu acesso à qualidade de vida." O segredo, revela, é gerir espaços que são por natureza diferentes de forma também diferenciada. Mas isso não implica a criação de ainda mais serviços e a contratação de mais funcionários, num município que emprega já 11.500 pessoas? "É exactamente o contrário", assegura o antigo ministro. "Estamos a propor aquilo de que ninguém teve coragem até agora, a extinção de freguesias. A questão é criar uma estrutura que seja sustentável e governável." "Sem um modelo que consiga fazer isto, Lisboa não tem futuro", declara. "Esta reforma tem de ser feita, sob pena de a cidade regredir na sua forma de governo e ficar cada vez mais atrasada", corrobora João Seixas. Sob pena de aumentar mais ainda o fosso entre os cidadãos e os políticos que administram Lisboa. "Mais cedo ou mais tarde estas reformas vão ter de ser feitas. Quanto mais tarde, mais vamos perder."
Lisboa e os vizinhos
Além de Telheiras, Seixas e Mateus propõem a criação de uma segunda nova freguesia, a do Parque das Nações. Mas a sua ambição para Lisboa é bem maior. Para o economista, só um governo metropolitano pode resolver os desafios que Lisboa enfrenta. "Temos uma das maiores concentrações metropolitanas da Europa e esse governo não existe. Há é um somatório de concelhos que não articulam as suas decisões. Para termos qualidade no centro da cidade, temos de a ter na área metropolitana e na região. A articulação dos transportes nesta área é decisiva. Não se pode ter a ideia de que os problemas de Lisboa se resolvem no concelho de Lisboa." "Havia toda a vantagem em o concelho incluir todo o espaço interior à CRIL - obrigando a dar novas oportunidades de desenvolvimento a uma série de territórios", defende. "Por que razão ter limites imaginários da cidade que já ninguém usa? Não faz sentido dividir o Parque das Nações [concelho de Lisboa] da Portela e de Moscavide [concelho de Loures]. E o metropolitano, por que razão não vai mais longe?" João Seixas sintetiza o dilema: "Por que havemos de ter uma divisão administrativa que limita a vida das pessoas e das empresas?"
O risco de não mudar
Alguns dos actuais desenhos das freguesias de Lisboa "são autênticas aberrações, tendo em conta o crescimento da cidade". Os investigadores sublinham que a divisão alternativa que propuseram está aberta a alterações: "Somos os primeiros a reconhecer que a zona do Lumiar velho pode perfeitamente continuar integrada no Lumiar e não em Telheiras", exemplifica João Seixas. Volta a enfiar o mapa na mochila. É dos anos 50, uma época em que o território de Lisboa já não alcançava quase Arruda dos Vinhos, como chegou a acontecer no séc. XIX. "Seria lamentável que por causa do traçado de algumas freguesias - poucas - todo este esforço de reforma da capital do país não fosse por diante", observa. E se os interesses partidários boicotarem a reforma? "Todas as reformas em Portugal têm sido boicotadas por isso", admite Augusto Mateus. "Mas as forças políticas têm noção do risco que correm em manter tudo como está."
Este assunto tem discussão marcada para o próximo dia 9 de Novembro, na Assembleia Municipal de Lisboa.