quarta-feira, novembro 10, 2010

A consciência do tempo

Há semanas que temos vindo a ser submetidos a um processo de intimidação mental e de asfixia social, que largamente ultrapassa os limites do suportável. O fantasma é o FMI, intermitente como todos os fantasmas, a ameaçar- -nos de medos maiores do que os medos habituais no viver português. Vem, não vem, está para vir, não virá. Esta dialéctica absurda é alimentada pelas nossas fraquezas perante conclusões aparentemente inexoráveis. Estamos nos antípodas do clima de serenidade, necessário a quem não renunciou da faculdade de se refazer para continuar a lutar por um mundo melhor. Mas a angústia metódica que nos inculcam, com estribilhos assustadores e práticas políticas temíveis, deixa marcas.

No último Prós e Contras, o sistema que nos conduziu a esta miséria foi colocado em questão. A falência de um modelo sem piedade e desprovido de outro objectivo que não seja o da acumulação de riqueza atravessou os depoimentos. Uma filosofia que paralisa e obriga à servidão, oscila entre o terror e a barbárie. Alguém, piedosamente, tentou dizer da necessidade de "humanizar o capitalismo". Pode "humanizar-se" um sistema cujas origens se baseiam, exactamente, no seu contrário? Um pouco por todo o lado, a contestação contra a preeminência do "mercado" sobre a razão dos valores morais atinge aspectos significativos. Os sinais que a época nos fornece são evidentes. E a própria Igreja, por natureza prudente e extremamente discreta, começa, aqui e além, a dar mostras da sua inquieta perplexidade.

Há semanas, a convite do Montepio Geral, desloquei-me ao Porto, a fim de debater, publicamente, com o bispo D. Manuel Clemente o problema da fome e da exclusão social. Há uma forma degradada de vida que a violência do neoliberalismo transformou em "normalidade". O bispo defendeu o espírito de entreajuda, tese também advogada por D. Carlos Azevedo, no Prós e Contras. São paliativos que nada solucionam e apenas evocam um conceito de caridadezinha, amiúde execrável. A Igreja tem de ser compelida, e até arrastada, pelo movimento das ideias, a encorajar o protesto generalizado e a indignação colectiva. Não deve quedar-se, através de murmúrios compassivos, pela solidariedade inócua com o sofrimento. O essencial está em causa. A boa vontade não chega. É outra expressão do quietismo, a forma mais sórdida de cumplicidade, e outro modo de disciplina férrea, com que as classes dominantes impõem as suas leis e regras. Reformar quê? Quando, na realidade, estamos a falar do demoníaco, contido numa ideologia que introduziu, como modelo de sociedade, a resignação e o aviltamento progressivo da condição humana. O campo da nossa batalha não é a procura do eterno: é a consciência do nosso tempo.




In Diário de Notícias

1 comentário:

Anónimo disse...

Quem ainda hoje julga que um país pode viver acima das suas possibilidades é burro velho que não aprende nada.