terça-feira, janeiro 25, 2011

Falta de provas



O Ministério Público concluiu que a construção, actualmente em curso, de uma vasta área de habitação e serviços junto à Rua de Artilharia 1, em Lisboa, só se tornou possível devido à prática de numerosas ilegalidades ao longo de mais de uma década. Mas nada aconteceu, nem vai acontecer. Foi tudo arquivado. Nuns casos por prescrição, noutros por não haver, da parte dos técnicos e vereadores da Câmara de Lisboa, consciência da natureza ilegal das suas decisões.

O inquérito concluído no mês passado pela Unidade Especial de Investigação da Procuradoria-Geral da República, coordenada pela procuradora Maria José Morgado, teve origem numa denúncia apresentada em Dezembro de 2008 pela Associação para a Qualidade de Vida em Lisboa, constituída por residentes na zona. Em causa estava a aprovação do loteamento dos cerca de três hectares em que funcionou o Colégio dos Maristas, na antiga Quinta do Mineiro, entre a Av. António Augusto Aguiar e a Rua de Artilharia 1.

De acordo com o despacho final de 16 de Dezembro, no qual o procurador adjunto Ricardo Matos determinou o arquivamento, os factos apurados são susceptíveis de "configurar em abstracto a comissão" de crimes de abuso de poder e prevaricação. O primeiro, segundo a definição legal, é cometido pelo funcionário, ou titular de cargo público, que abuse dos seus poderes, ou viole os seus deveres, com o objectivo de obter benefícios para si ou para terceiros, ou de causar prejuízo a outrem. Já a prevaricação respeita aos titulares de cargos políticos que conscientemente tomem decisões ilegais para beneficiar alguém.

Vantagem para o promotor

Entre as numerosas ilegalidades detectadas em todo o processo avulta a aprovação do loteamento, que o relatório pericial apenso aos autos considera nula, e a emissão da informação prévia favorável a essa operação. Foi essa informação, aprovada em 2000 pela vereadora Margarida Magalhães, no executivo presidido por João Soares, que atribuiu ao promotor (grupo do empresário João Pereira Coutinho) o direito de ali construir sem que fosse previamente elaborado o Plano de Pormenor exigido pelo PDM.

Relativamente a todas as intervenções ilegais ocorridas no processo até à aprovação do loteamento por unanimidade, em Novembro de 2002 - já com Santana Lopes como presidente -, o despacho considera que, "independentemente de se verificar, em concreto, a existência de indícios suficientes da prática pelos funcionários da CML [ou pelos vereadores]" de crimes de abuso de poder, "cumpre referir que já decorreu na sua totalidade o prazo de prescrição", neste caso de cinco anos.

Quanto aos factos subsequentes - que se prendem com o cálculo das cedências e compensações a pagar ao município pelo promotor; com a determinação dos espaços de estacionamento público que ele ficou obrigado a construir; e com as condições em que a câmara lhe vendeu duas parcelas que eram necessárias para viabilizar o projecto - foi igualmente ordenado o arquivamento do inquérito, mas por motivos diferentes. Neste aspecto, estavam indiciados crime de abuso de poder e de prevaricação praticados até 2008, mas não foram encontrados sinais de que houvesse intenção de beneficiar terceiros.

"É certo que (...) a actividade dos intervenientes determinou uma vantagem para o promotor, consubstanciada, desde logo, na aprovação, com os parâmetros em que foi feita, da operação urbanística pretendida", escreve o procurador. Contudo, sublinha, os autos "apontam no sentido de que as condutas adoptadas resultam "de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função"; e não de uma pré-determinação" no sentido favorecer o promotor. Por isso nem foram constituídos quaisquer arguidos

Um caso exemplar
"Este é um processo exemplar da forma como funciona a justiça e se cometem ilegalidades", sintetiza Leonor Coutinho, da direcção da associação que denunciou o caso. A antiga deputada socialista nota que só algumas das questões suscitadas foram investigadas e conclui: "As coisas são nulas e ilegais, mas ninguém é culpado." O despacho do MP diz que os actos dos vereadores Margarida Magalhães, Eduarda Napoleão, Gabriela Seara, Helena Lopes da Costa e Manuel Salgado "são passíveis de colocar em crise os princípios da legalidade", mas "não surge indiciado" que a sua actuação fosse consciente. J.A.C.

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