quinta-feira, janeiro 20, 2011

Nevoeiros

Declaração de interesses: gosto do nevoeiro. Melhor, sou fascinado por nevoeiros. Desde que li pela primeira vez a Londres vitoriana e depois a visitei na TV e no grande «écran». Tudo talvez porque seja raro vivê-lo em Lisboa, pelo menos tão intensamente quanto o vivido na última semana, em que, por instantes, sobretudo na inesquecível noite de 5ª para 6ª julguei ver Jack, O Estripador, semi-iluminado por baixo de um dos candeeiros de certa praça pacata junto ao Areeiro, de onde desapareceu por artes mágicas, tal qual Welles pelos túneis da Viena de “O Terceiro Homem”, mas sem acordes de cítara.

Digam lá se com nevoeiro Lisboa não fica mais romântica, mais misteriosa, mais sensual, mais … europeia, até porque às mazelas, aos desbastes, às trafulhices e demais desencantos de que a cidade padece no dia-a-dia, a esses nem vê-los, quanto mais ter que os suportar, em dias com nevoeiros como aquele.

Mas apenas gosto dos nevoeiros atmosféricos, das obscuridades feitas de humidade condensada. Não gosto de outros tipos de nevoeiro e obscuridades, muito menos das criadas artificialmente, accionadas por controlo remoto ou encenadas para espectáculo de ocasião, como forma de entreter a audiência e camuflar a dura e triste realidade.

Por isso defendo que em Lisboa deva haver faróis que avisem dos escolhos obscuros e iluminem por rota segura. E, uma vez que a D. Sebastião tão cedo o veremos por aí (se é que algum dia o veremos), é sobretudo preciso que haja uma “zorra” que ronque em dias de nevoeiro.

Que avise do perigo de naufrágio da cidade por entre o articulado em preparação para o novo Plano Director Municipal, e pelo emaranhado de pormenores aparentemente insignificantes de vários dos Planos de Pormenor (e loteamentos) em pré-implementação (Baixa, Parque Mayer, Aterro da Boavista, por ex.). Uma zorra que incuta juízo a quem decide, quando está em causa o desaparecimento efectivo do património arquitectónico de finais do século XIX-XX, vide a multiplicidade de projectos de alterações profundas e de construção nova em apreciação e desenvolvimento para as Avenidas Novas, Bairro Barata Salgueiro e Coração de Jesus.

E que o som desse farol se faça ouvir nas reentrâncias mais profundas e bafientas do labirinto neuronal de quem acha que uma árvore pode continuar frondosa se a “rolarem” e mutilarem, ou se a plantarem por cima de cimento ou a sufocarem em caldeiras minúsculas em largura e profundidade. E que o poder desse som arraste consigo e de uma vez por todas todos os automóveis estacionados em cima do passeio, bem como todos os candeeiros e bancos de fancaria que paulatinamente vêm pululando pelo espaço público de Lisboa. É difícil, mas se os antigos de Alexandria o conseguiram, também os lisboetas o hão-de conseguir.



In Jornal de Notícias (20.1.2011)

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