Nos dias que se seguiram, fui descobrindo outras portas entaipadas de outros prédios devolutos agora estridentes, naquele azulão que atrai o olhar e dá a ver o que já não víamos. Na Av. da Liberdade, onde há pouco outro prédio assim ardeu para susto de todos aqueles que ainda se lembram das chamas a passearem-se desenvoltas pelo Chiado, também surgiu mais uma porta azul. E noutras ruas e travessas da cidade antiga, esta manobra silenciosa de atenção prossegue o seu caminho. Será longo pois em Lisboa, dizem os últimos números, existem 4.600 prédios devolutos, abandonados, a desfazerem-se diante de nós. Muitos litros de tinta serão necessários.
Este azul forte e hipnótico, cor de outras paragens, cor de mar e de céu, é cor garrida de coisa viva, pulsante, atraente. E por isso tão inteligentemente eficaz. Abre uma porta fechada e convida a imaginação a entrar pelos escombros adentro, devaneando sobre outra realidade possível, a de um prédio estimado e recuperado. É um drama português: damo-nos melhor com a destruição que com a conservação, o desleixo do espaço público é-nos ligeiro, alheio e comum. Passamos por ele e encolhemos os ombros, nada disso é connosco, há-de ser tarefa de alguém que maldizemos sem lhe saber o nome, como é hábito.
Não sei quem anda a pintar as portas entaipadas dos prédios mortos de Lisboa. Mas adorava saber quem é este meu novo herói anónimo. Por uma vez, aprecio quem assim grafita a cidade. Alguém, por aí, que não encolhe os ombros, antes arregaça as mangas e pega numa trincha para iluminar a cidade moribunda. E nos diz a todos, habitantes, visitantes ou autoridades municipais, que não somos totalmente indiferentes a tanto desleixo e cinismo, a tanto esquecimento e incúria. Alguém que com um pincel político e amoroso, demonstra aos taggers idiotas e bestiais que conspurcam a cidade, que existe outra forma realmente consequente de nos apoderarmos da urbe. Como se a cidade antiga, que amamos, nos dissesse nesta língua inventada, de azul em azul, aquilo que um dia alguém escreveu no topo do elevador do Lavra e ainda lá está suplicante numa parede: "Falem-lhe de mim".
Catarina Portas
5 comentários:
Tão bonito...
sim, o seu texto é bonito e emocionante
tenho lido várias reacções a estas portas azuis em vários blogues. muito se ajuíza acerca desta obra anónima. mais anónima ainda é a intenção real deste artista, certamente provocador, que tem posto a gente a indagar, e que trouxe a afecção do museu onde poucos vão, para a rua onde todos passam.
obrigada história partilha.
no porto o azul é outro,
sou um azul cor mais gentil e prazenteiro, abrindo as suas portas ao mundo inteiro, com os seus crepúsculos, outonos e devaneios, na luta contínua pelas vagas incertas da mudança,
fala-nos a alma de uma cidade que dança, inscrevendo-se nos seus próprios sinais de revolta, com a voz da eterna beleza do saber-se criança, cantando-se ela sempre em sopro e sempre ela esperança.
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mais valerá a pena procurar-se outra coisa, sem alma e sem destino, sem ...
, apesar de tudo fica a tentativa,
não vou perder mais tempo com ...
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, vou trabalhar.
As onze portas de Tebas, Catarina.
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