As crianças não têm a possibilidade de ter carta de condução. Esta verdade evidente parece esquecida no desenho da cidade que temos construído nos últimos anos. Como notou Enrique Peñalosa, num discurso no Banco Mundial, vivemos numa sociedade que sabe perfeitamente qual é o melhor ambiente para um gorila ou uma baleia, mas desaprendeu a construir cidades também para as crianças.
(c) 2007, Joel Crawford
Permitir a entrada de quase meio milhão de carros em Lisboa todos os dias tem as suas consequências. Não é preciso ser romântico, sociólogo, nostálgico ou pedagogo para saber que a autonomia e a possibilidade que uma criança tem de explorar o mundo são elementos fundamentais para o seu desenvolvimento físico e psíquico – sujar as mãos, dobrar a esquina da rua pela primeira vez, construir amizades a caminho da escola, apanhar chuva, perceber e medir os seus limites, subir uma árvore, experimentar o perigo, molhar os pés, conversar com estranhos, acompanhar um carreiro de formigas, ter receio e fazer, ter receio e não fazer.
(em atenção ao pcc)
12 comentários:
Eu já nem faria referência aos 400/500 mil automóveis que entram porque é algo que é difícil mudar no curto prazo (em termos políticos, não em termos técnicos).
Agora não compreendo porque é que Lisboa continua sem ter o limite de 30km/h nos bairros residenciais ou mesmo, como escrevi aqui , uma velocidade igual aos peões. Colocar umas lombas seria fácil e barato...
De acordo. Mas há outros problemas. Em muitas ruas de Lisboa, parar um carro para que "suba" ou "desça" um idoso, ou para carregar ou largar a bagagem, é uma tarefa extremamente stressante, tal a sobrecarga de trânsito e a consequente desumanização.
Isto não quer dizer que o abuso que há muito acontece com as cargas e descargas a praticamente toda a hora e qualquer local seja algo que se discipline.
"não seja algo que se discipline".
Sobretudo as cargas e descargas, onde impera a selvajaria e impunidade nos horários e nas dimensões dos veículos utilizados, face às das ruas em que circulam. Para além do vulgaríssimo estacionamento em plenas ruas residenciais de pesados e frotas de "comerciais".
Quanto ao resto, convém resistir à demagogia. Foram cometidos, décadas a fio, crimes e erros crassos de urbanismo e licenciamento (e ainda hoje se constrói com uma densidade absurda; se abrem novas ruas com uma largura que não permite o estacionamento e cruzamento, sequer, de automóveis; se erguem prédios com UM lugar de estacionamento por fogo, quando é elementar antever dois, se não três, carros por habitação).
Permitiu-se, décadas a fio, a continuada insuficiência do transporte público.
Permitiu-se - e permite-se - a edificação de zonas de escritórios e serviços com um desprezo total pelo estacionamento, seja de quem lá trabalha seja de quem as demande.
E agora a solução é castigar, como um criminoso sem perdão, quem vem no seu carro para a cidade!
Que pena, que pena mesmo, que todos esses automobilistas não se decidam - todos - a deixar os seus carros à porta de casa durante dois ou três dias seguidos.
Lisboa está um caos. E, salvo se arrasada e recomeçada do zero, evidente impossibilidade, não é recuperável. Mas antes de se chegar à culpa do automobilista, há muitas outras a castigar. Nem que seja para obter um réstia de autoridade moral.
Costa
A culpa não é do automobilista em si, mas de quem "planeou" a favor do automóvel.
Agora criar barreiras à entrada de automóveis (seja redução de estacionamento, mais linhas BUS, seja o que for) não é castigar o automobilista, é pura e simplesmente a única forma de promover uma mobilidade racional.
"A culpa não é do automobilista em si, mas de quem "planeou" a favor do automóvel.
Agora criar barreiras à entrada de automóveis (seja redução de estacionamento, mais linhas BUS, seja o que for) não é castigar o automobilista, é pura e simplesmente a única forma de promover uma mobilidade racional."
Pode até ter razão. Mas com toda a probabilidade o que vai acontecer - neste país em que estado e autarquias definitivamente não existem para servir a comunidade - será o levantamento dessas "barreiras ao automobilista" de forma muito mais expedita, e desproporcionada, do que a criação de verdadeiras alternativas (verdadeiras e não demagógicas) ao uso do automóvel particular.
Desde logo porque é mais simples, muito mais barato e rentável de forma quase imediata: as portagens, por exemplo dão dinheiro (e que mais querem um estado e uma câmara falidos?); o estacionamento pago, idem; as multas, idem.
Mais, é óptimo sob o ponto de vista propangadístico: que melhor, por exemplo, para caír nas boas graças dos "apenas" peões, do que castigar essa besta chamada automobilista (porque é essa perspectiva vindicativa que forçosamente virá à tona)?
O Poder vai tirar proveitos da sua criminosa actuação no passado. É o crime perfeito! Afinal, existe...
Já agora que se faça então mais uma coisa: que se proíba taxativamente e se puna impiedosa e sistematicamente o estacionamento, absolutamente inqualificável, nas áreas próximas dos estádios de futebol, sempre que há um qualquer jogo. Aí sim, pratica-se a mais abominável selvaria, atentando-se contra a mobilidade, a segurança e o bem-estar, a propriedade privada e pública.
E por alguma razão de força maior? Por alguma inevitabilidade - uma fatalidade - própria do simples exercício de uma profissão, na cidade? Por evidente insuficiência ou inadequação de transportes públicos?
Não. Para "ir à bola!"
Mas isso, suponho, continuará a ser coisa intocável.
Costa
Ps: já agora, como foi possível autorizar a construção de estádios - os principais bem recentes, como se sabe - sem prever generoso espaço de estacionamento? E como é possível, se e onde tais espaços existem, permitir - "fechar os olhos" e até procurar activamente ordenar aquele caos - o estacionamento selvagem que por ali se faz?
1. "óptimo sob o ponto de vista propangadístico: que melhor, por exemplo, para caír nas boas graças dos "apenas" peões". Toda a história recente de mobilidade em Portugal mostra exactamente o contrário: do ponto de vista político é muito mais vantajoso apoiar os automobilistas do que os peões, nem que seja porque Portugal está no top mundial em termos de automobilistas por habitante.
2."verdadeiras alternativas (verdadeiras e não demagógicas) ao uso do automóvel particular" Concordo com a necessidade de alternativas. Agora nunca haverá verdadeiras alternativas enquanto os automóveis entupirem a cidade e os autocarros circularem a 10km/h. Mesmo que se duplicasse o seu número, mantendo-se a velocidade, nunca seria uma boa alternativa. Eu sei que é uma medida brusca, mas sem primeiro reduzir o número de automóveis, os transportes públicos não poderão ser uma boa alternativa aos olhos de muitos.
3. É necessário levantar barreiras aos automobilistas (que obviamente não tem que passar por portagens). Mesmo que os transportes públicos fossem os melhores do mundo, ao existir estacionamento gratuito por toda a cidade e uma fluidez mínima do tráfego, acha que haveria muitos automobilistas a deixarem o automóvel em casa? Claro que não, e cairíamos outra vez no problema do excesso de veículos privados empatarem os públicos.
Já agora, o que tem o autor do post, especialista na matéria, a acrescentar?
Estimado mc, o "autor do post" nada tem de "especialista na matéria" - se por isso se entender uma qualificação académica em urbanismo e afins (e não, nada me move contra a cultura ou a instrução, descanse) -, nem tenciona entrar em polémicas sobre "a matéria".
Muito menos com quem, perante uma simples (e, permita-me a ousadia, legítima) réplica, de imediato se refugia numa invocação de "especialista" que, no contexto, é evidentemente jocosa (pelo menos), insultuosa (muito provavelmente) e substantivamente desconsideradora da capacidade do interlocutor (em qualquer dos casos).
É uma prática comum, na falta de mais sólida argumentação.
Fique pois o prezado mc com as suas verdades. Eu manterei as minhas. Até ver, pelo menos.
Costa
Ps.: o "autor do post" é, ainda assim, alguém que, ao longo de mais de quatro décadas, já morou na periferia e estudou e trabalhou no centro na cidade; e já lhe ocorreu o inverso. Agora mora e trabalha na cidade. Já foi intenso cliente (não "utente"!) dos transportes públicos, já foi automobilista de forma quase exclusiva; e vai presentemente circulando na sua cidade, recorrendo, moderada e racionalmente, a uma e outra dessas formas de transporte (o "autor do post" não estaciona em violação do Código da Estrada; e no que ao "estacionamento gratuito por toda a cidade" respeita, paga-o e paga-o bem! Uma curiosa gratuitidade, sem dúvida).
O "autor do post" acredita ser isso suficiente, pelo menos, para saber da tremenda incapacidade dos transportes públicos - e não, o problema não se resume na circulação "a 10 à hora" - e para ter a certeza de que a componente repressiva do transporte individual será muito mais rápida e profunda do que uma remodelação do transporte público que, para ser justa e eficaz, lhe deveria ser pelo menos simultânea, se não mesmo anterior.
O "autor do post" acredita ainda que enquanto a cidade (e os seus subúrbios) continuar a crescer descontroladamente, num verdadeiro "horror ao vazio" - a tudo o que não for construção (e construção densa!) - e numa caça desesperada a toda a receita que possa resultar de terrenos, licenças, impostos e taxas ligados à construção civil, toda a solução em matéria de transportes, privados e públicos, que hoje se encontre e materialize, estará em pouco tempo condenada ao mais infeliz fracasso.
Mas essa é uma questão que nos levava longe.
Bom, antes de mais devo dizer que gosto que o "meu post" tenha provocado esta troca de ideias. Mas vamos lá "arrefecer" um pouco porque me parece haver aqui um mal-entendido entre os dois. Caro Costa, quando li o "comentário" to mc, assumi que o "autor do post" era eu - e achei o tom da troca de ideias, muito cordato e com muitas ideias importantes dos dois lados. Discordar é normal e saudável.
Ao repto do mc para eu me pronunciar devo dizer o seguinte:
O que reparei de imediato foi o facto de ninguém falar do assunto do "post". Não é criticável, mas interessante. Com os meus primeiros "posts" gostaria de enquadrar o problema antes de "saltar" sobre os problemas da mobilidade e as possíveis soluções. Acredito que antes de começarmos a pensar sobre mobilidade é necessário pensar na cidade que queremos. A mobilidade só em raras excepções é um fim em si mesmo - passeios dominicais, peregrinações religiosas, etc. A quase totalidade das nossas deslocações são feitas para chegarmos a um fim - a um emprego, a um familiar, a uma biblioteca, entregar uma encomenda, etc. Só meditando sobre a cidade que realmente queremos, podemos depois encontrar quais são os problemas e quais as soluções para os resolver. O espaço público tem muitas outras funções que servir de suporte ao movimento de pessoas e bens. Poderão ser perguntas retóricas, mas queremos uma cidade onde é quase impossível uma criança ir a pé para a escola (como é normal em muitos países da Europa)? Queremos uma cidade onde os passeios têm muitas vezes meio metro com pilaretes a meio? Queremos uma cidade para os carros ou para as pessoas? Até que ponto são objectivos compatíveis? Quais são as nossas prioridades?
Quanto mais complexo é um problema mais influência tem a forma como o enquadramos nas soluções encontradas.
mja
Costa: Pois de facto houve um mal entendido por parte do Costa. Quando escrevi "Já agora, o que tem o autor do post, especialista na matéria, a acrescentar?" estava-me a referir ao Mário Alves, que é realmente especialista na matéria! Tenho pena que tenha interpretado como um ataque sarcástico, quando era apenas um pedido para uma terceira opinião. Será sinal de falta de cultura de debate e troca de ideias? (Agora sim, um sarcasmo um pouco na brincadeira)
MJA: Inicialmente eu até me referi ao assunto do post, antes de a conversa ter sido puxada para outro lado. Escrevi que o limite dos 30km/h poderia ser uma solução mais rápida e fácil (em comparação com a redução dos 500 mil automóveis) para a resolução do conflito entre crianças e o trânsito. Já agora, o que acha?
Confundidos por mim os significados de "autor do post" e "autor do comment", resta-me pedir-vos desculpa. E esperar que vos seja possível aceitar esse pedido.
E quanto à questão da falta de cultura de debate e troca de ideias, não estou em posição, agora, de argumentar...
Quanto ao que de facto estará por aqui em debate, pouco mais posso notar do que um profundo cepticismo (desculpem lá, mais uma vez).
Os automobilistas portugueses excederão sistematicamente a velocidade em ambiente urbano, e estacionarão indevidamente, da mesma forma como os cidadãos portugueses cospem para o chão ou libertam-se do seu lixo (do maço de tabaco ao electrodoméstico velho) para o gigantesco caixote do lixo em que transformam todo o local em que vivam.
As cidades desfiguram-se, e transformam-se num verdadeiro nó górdio, por culpa do "pato bravo". E antes dele por quem permite que ele o seja: ou seja, por quem tem poderes para o travar, para disciplinar e harmonizar a sua actuação, mas não o faz.
E por culpa da autarquia, mais uma vez, quando, por exemplo, faz levantar "n" vezes o pavimento da rua, para fazer instalar ou renovar, um de cada vez, os serviços das "utilities", e permite que - entre prédios e buracos abertos para esses trabalhos ou outros - uma rua, uma avenida, possa estar em obras, e condenada à poeira, à lama, ao ruído, ao desconforto, durante eternidades. Durante anos.
E fora das cidades assiste-se à constante desfiguração da paisagem rural, das pequenas vilas, das aldeias, muitas vezes sob o aplauso de um povo que ainda confunde progresso com construção civil a todo o custo, estética com janelas e portas de alumínio, e desenha as suas casas numa folha de papel quadriculado.
Pensar em que cidade queremos, pretender que as crianças se desloquem a pé para a escola e possam brincar numa rua tranquila, sonhar com uma cidade silenciosa (e elas existem) e onde apeteça - e se possa - passear, talvez seja de facto (desculpem-me novamente) uma bem intencionada retórica, quando todo um povo está criticamente falho de educação cívica, está historicamente embrutecido (mesmo boa parte daquele que consegue atingir um patamar razoável de instrução - coisa bem diferente de educação e cultura) e tem profundamente inculcados, desde sempre, desde o analfabeto ao "dr." ou "eng.", desde o governado ao governante, os altos valores do "desenrasca" e do "safar o meu e os outros que se lixem".
Ou seja, o problema da cidade - também o problema da cidade - começa num nível mínimo de sofisticação de hábitos que não existe entre nós. Porque não é ensinado nem cultivado, seja em casa, seja na escola, seja na "comunicação social", seja onde for.
Um problema que se por acaso começasse agora a ser de facto enfrentado, demoraria gerações até estar resolvido.
Basta ver o tratamento dado e o destino aflitivo da generalidade dos "equipamentos" urbanos de lazer: jardins, parques infantis, miradouros, etc.. Rapidamente abandonados por quem os instala; vandalizados, em grau maior ou menor, quase na hora em que são instalados, por quem os deveria utilizar e acarinhar.
Não acrescentei nenhuma proposta concreta de solução dos problemas da cidade? Limitei-me a um arrazoado de um pessimismo estéril e paralizante?
Pois, é possível que sim.
Costa
Para o mc a resposta é simples: Tem toda a razão, a protecção dos bairros com Zonas 30 km/h é uma das soluções mais utilizadas e eficientes para tornar os Bairros mais aprazíveis e seguros. Mas atenção, não basta sinalização (colocar sinais de zona 30, atrevo-me a dizer que é quase o mesmo que ficar quieto), é necessário um trabalho demorado e caro de alteração de algumas características físicas dos bairros, principalmente as suas entradas - precisamente as que descreveu noutro comentário e no seu excelente post no one-less-car - não sei se sabe mas há uma proposta para alteração do Código da Estrada para introduzir toda essa panóplia de sinalização e conceitos que, é comum além Badajoz, mas inexistente no CE português. Como em todos os problemas complexos não há mezinhas e é essencial trabalhar a várias escalas e em várias frentes ao mesmo tempo. Reduzir o número de carros que entram em Lisboa, pode demorar poucos meses através de uma fiscalização eficiente do estacionamento - por exemplo não deixar estacionar carros sobre o passeio e impedir que os pendulares recarreguem os parquímetros ao fim das 2H 30 min. Os efeitos seriam mais rápidos e globais que proteger meia-dúzia de bairros (que tb deveria ser feito ao mesmo tempo). De resto, assino por baixo em quase tudo o que disse.
Para o Costa: Que carga negativa, homem! Concordo com quase tudo o que diz, mas acho que temos que ser mais construtivos - mas aceito que todos temos dias assim. Se os espanhóis conseguiram algumas coisas, nomeadamente e em larga medida controlar os carros sobre os passeios e acalmar os bairros, porque será que os portugueses não conseguem? Será genético? Acredito que com objectivos claros e com uma boa comunicação com os eleitores é possível a adopção de medidas necessárias e temporariamente impopulares para parte dos utentes da cidade. Vamos deixar a "culpa" de lado por agora porque não conduz a soluções positivas. Sinto que muitas das suas legitimas irritações são um pouco contraditórias - por exemplo, aumentar o número de estacionamentos é, na maior parte dos casos, a pior das soluções. Compreendo que esteja desconfiado da classe politica, em maior ou menor grau estamos todos, mas a mobilidade é um problema político, com soluções politicas. Por isso, não temos outra saída senão mudar a política e os políticos. Felizmente, como alguém já disse, são recursos renováveis! :-) Perante um problema imenso compreendo que pareça impossível. Mas não é.
mja
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