quarta-feira, setembro 19, 2007

Salazarinha Nogueira Pinto

Maria José Nogueira Pinto tem boa imagem e boa imprensa, o que ajuda a disfarçar o facto de ser a salazarista mais assumida da política portuguesa.

Em primeiro lugar, vamos despachar uma falácia. Maria José Nogueira Pinto anunciou que enquanto comissária não-eleita para a Baixa-Chiado daria prioridade a expulsar as lojas chinesas da Baixa e concentrá-las numa Chinatown. Há gente que minimiza a questão dizendo que “os chineses não se importam”. Não sei em que dados se baseiam. Mas a pergunta aí passa a ser: o facto de uma comunidade se aceitar guetizar torna a guetização desejável? Imaginemos quais seriam as reacções se a comunidade em causa fosse, por exemplo, de muçulmanos. Que tal fazer uma IslamTown em Lisboa? Que diriam as mesmas pessoas que acusam os muçulmanos de não quererem “integrar-se”? Que os chineses podem mas os muçulmanos não?

A questão, acima de tudo, não é se as comunidades “querem” ou “não querem” viver em guetos. A questão é se os lisboetas querem guetos para a sua cidade. Ora, Lisboa já teve uma tradição de guetos. A Mouraria nasceu como gueto a partir de 1147: era o território fora das muralhas para onde os muçulmanos tinham de se dirigir após o pôr-do-Sol. Guetos de judeus foram dois: a “judiaria grande” e a “judiaria pequena”, que serviam para impedir que uma comunidade dinâmica e especializada comprasse boas casas (e boas lojas...) fora das fronteiras permitidas. A coisa acabou muito mal: foi por aquelas ruas que, em 1506, lisboetas cristãos massacraram seis mil dos seus concidadãos.

***

A leviandade com que Maria José Nogueira Pinto fala destas coisas é só aparente. Levianos são os que tratam o assunto como meras “provocações” da “Zezinha”. Por detrás está uma estratégia política e não é por acaso que ela já voltou a subir a parada. Numa entrevista ao último Expresso, declarou enfaticamente o seu voto em Salazar no concurso dos Grandes Portugueses – “claro!” –, derretendo-se em elogios ao ditador que “sabia mandar”, cumpriu “os objectivos que tinha” e “preservou aquilo que queria preservar”, para rematar afirmando aos jornalistas a sua paixão pela trilogia da ditadura. “Pode pôr: Deus, Pátria, Família”.

Para quem ainda ache que isto é só um acaso, lembre-se que Nogueira Pinto deixou como vereadora da CML um regulamento de bairro municipal a que os imigrantes estavam impedidos de concorrer. Porquê? Porque, como disse então Nogueira Pinto, “isto não é uma fruteira onde se possam meter bananas, maçãs e laranjas e dizer que está tudo bem“.

Maria José Nogueira Pinto tem boa imagem e boa imprensa, o que ajuda a disfarçar o facto de ser a salazarista mais assumida da política portuguesa. O problema é querer levar a imitação do seu ídolo ao ponto de querer mandar sem ter levado as suas ideias a votos.

Não há ingenuidade nem inexperiência política nestas declarações, mas uma questão muito séria de poder. A este jogo chama-se “esticar a corda” e o resultado é saber, como diria Salazar, “quem manda”. Maria José Nogueira Pinto quer a Baixa-Chiado para ela e, para começar, marca já as suas fronteiras forçando os limites da indecisão de António Costa. Se ele voltar atrás na decisão de a nomear, Nogueira Pinto fará o papel de vítima a que está acostumada: só no último ano já o desempenhou por três vezes. Se for nomeada, tem António Costa na mão e já deixou claro que ninguém lhe põe limites. Se for nomeada e não apresentar resultados, o que também vem sendo hábito, pode voltar ao seu desempenho na última vereação: arranjar uma desculpa qualquer e saltar fora.

Já vimos isto antes. É coincidência? Não: é o seu modus operandi. Há método nesta loucura

Rui Tavares
(In Público 19/9/2007)

2 comentários:

Anónimo disse...

Também no Público de ontem, salvo erro, na página anterior, a crónica de José Vítor Malheiros sobre o espaço público e os centros comerciais e as visões futurísticas do apocalipse urbano.

É pena que também não o transcrevam (e reflictam sobre).

Anónimo disse...

A PRIVATIZAÇÃO DO MUNDO

Houve uma altura em que morávamos num prédio, íamos fazer compras à rua e passávamos férias na praia. Hoje moramos em condomínios fechados, fazemos compras em centros comerciais e passamos férias em resorts.

Uma das diferenças fundamentais desta mudança é que, enquanto há uns anos nos movimentávamos durante a maior parte do tempo em espaços públicos de utilização livre e acesso universal, passámos a fazer isso em espaços privados, de utilização condicionada e acesso restrito. Sabemos a razão da evolução: estes novos espaços privatizados são controlados (câmaras, guardas, portas), teoricamente mais seguros (do ponto de vista da higiene, do crime, dos acidentes) e mais confortáveis (acessos, luz, temperatura). E eles oferecem, para mais, um leque de serviços úteis, das instalações sanitária à animação, e uma concentração de ofertas que os torna atraentes. É por isso que as pessoas lá vão e essa escolha é racional. É evidente que tudo isso se paga, mas os clientes destas várias estruturas estão dispostos a isso.

Acontece, porém, que todas estas empresas (a que a linguagem tecnocrata chama “infra-estruturas”) assumem funções que já foram do espaço público e cuja deslocalização constitui um empobrecimento desse espaço público. Um centro comercial não é apenas um “espaço de qualidade onde pode desfrutar das suas compras com prazer depois de deixar os seus filhos em segurança no nosso serviço de “baby-sitting”. É também um pretexto para que as autoridades municipais não invistam na qualificação de mercados, das ruas ou jardins, não olhem para as praças ou passeios como o local de trânsito e de encontro que deviam ser e não se sintam culpadas nem sejam responsabilizadas pela inexistência de oferta desportiva ou cultural para os jovens. Afinal, se a “infra-estrutura” já existe e tem a adesão das pessoas, para quê mais? E o facto dessa “infra-estrutura” ser privada é uma vantagem, pois isso significa que assim se “produz riqueza” (=empresas ganham dinheiro), em vez de se “desperdiçar dinheiros públicos” (=todos usufruem de serviços gratuitos).

A ficção científica mostrou-nos um mundo futurista onde ilhas de alta tecnologia e conforto inimaginável existem num mar sórdido de miséria, crime e droga, onde vive a escumalha e a resistência (com armas feitas de sucata recuperada). Há regiões do globo onde já podemos ver em construção este cenário e essa dualidade é cada vez mais patente nas nossas sociedades.

Independentemente dos serviços que a economia privada pode proporcionar aos consumidores, o estado tem o dever de promover a cidadania e de garantir a equidade na participação e usufruto da cidade. Todos estes microcosmos privados são espaços de consumo, onde o direito de permanência se adquire pelo dinheiro e onde as regras são ditadas pelas empresas. São espaços totalitários, inteligentemente concebidos para orientar os olhares, os passos e os gestos nalgumas direcções, para promover o consumo e para gerar uma fugaz sensação de felicidade através desse consumo, rigorosamente estruturados por classes e castas e políticas claras de exclusão (recordam-se da satisfação da directora de marketing do Centro Comercial das Amoreiras pela escassa frequentação do seu centro por pessoas “de cor”?)

Uma sociedade não se pode estruturar, não pode construir valores comuns, criar arte, produzir liberdade, aumentar o seu bem-estar e educar os seus filhos exclusivamente em torno do consumo e do negócio. As cidades ou são espaços de encontro e de diálogo, abertos e inclusivos, livres e surpreendentes, ou não são nada.

A privatização generalizada dos espaços comuns, a sua monopolização por interesses privados não é admissível numa sociedade democrática e aberta. Há casos em que o desinvestimento, o desinteresse e a inabilidade dos organismos do Estado na construção desse espaço comum parece de tal forma caricato (o Terreiro do Paço é um exemplo canónico, mas a Internet é-o também) que dir-se-ia existir um plano para a sua alienação a interesses privados, como acontece com a saúde ou a segurança social. A atitude dos cidadãos não pode ser negligente nem demissionária. O espaço público tem de continuar a ser reivindicado, construído e ocupado para além das catedrais de consumo que as empresas continuam a construir. As nossas praças têm de ser outras.”

José Vítor Malheiros, PÚBLICO, 18/9/2007