sexta-feira, novembro 07, 2008

Os Contentores

Parece evidente que o Miguel Sousa Tavares, portista convicto, ainda a destilar com o facto de lhe terem roubado o computador portátil de sua casa, decidiu que alguém haveria de pagar por tabela na semana passada. Esse “alguém” podia ter sido o Benfica ou o Sporting, mas acabou por ser o Porto... de Lisboa (APL).

Na exigência natural de uma cidade com menos contentores e livre acesso do cidadão ao rio, o Sousa Tavares levou atrás dele um conjunto respeitável de signatários de uma petição online contra a iniciativa do governo em prorrogar a actividade mercantil da APL nas docas de Alcântara para além do limite do razoável.

Qual é o razoável? Digamos que autorizar a APL a funcionar por mais um ano com apenas mais um contentor em Alcântara ou Santa Apolónia já seria um abuso de poder (o contrato é para mais 27 anos). Mas nem tudo é mau. Se o simples roubo de um portátil conseguiu unir esta cidade numa causa nobre e altruísta, não acham que deveríamos agradecer aos bandidos que decidiram entrar pela casa do Sousa Tavares?

Há uma grande diferença entre a Lisboa que temos e a Lisboa que muita gente (que vive fora da cidade ou dentro dela, em condomínios fechados) gostaria que tivéssemos. É mais fácil, confesso, lutar pela Lisboa que gostaríamos de ter, porque a incerteza do futuro é dinâmica e permite-nos sonhar (ou vender política).

Imaginamos um dia a Baixa de Lisboa como uma grelha de arquitectura pombalina recuperada, vivendo a harmonia comercial e tradicional que há anos se lhe exige, e a fluidez natural de público residente atravessando o Terreiro do Paço em direcção a uma melancolia ribeirinha predestinada, com esplanadas e poesia de Outono.

Mas Lisboa não é, nunca foi, nem alguma vez será isso. A realidade do presente é mais dolorosa. E, no entanto, também é mais anestesiante: porque a ausência de soluções impede-nos de reagir e acreditar. E, claro, a obsessão lúdica da cidade como sistemático parque de diversões, com os carros de Fórmula 1 ou as paradas da SIC na Avenida da Liberdade, vão distorcendo ainda mais a perspectiva real de Lisboa.

Por sequência, o Porto de Lisboa é um dilema bipolar: porque Lisboa é, na sua natureza, uma cidade portuária (não pode abdicar comercialmente desse trânsito) que vive um equilíbrio instável com a sua outra personalidade, a de ser capital de país, com cidadãos e turismo. Basta uma das “personalidades” sobressair (neste caso, foi a APL, com conivência do Estado) e está o caldo entornado.

Isto ainda agora começou. Mas, infelizmente, às vezes é preciso um choque tão brutal como um roubo de portátil em casa (ou, no meu caso, um assalto na rua) para finalmente nos apercebermos de que a cidade não está segura nem assegurada. É claro que os piores bandidos não são os marginais, são aqueles já integrados no sistema. Os contentores não os irão conter ou sequer contentar.

(Jornal METRO, 7 Novembro)

1 comentário:

Luís Serpa disse...

Caro Miguel Somsen,

não pactuo de modo algum com a menorização que faz das motivações que levaram Miguel Sousa Tavares a lançar a petição contra o absurdo projecto de ampliação do terminal; e acho igualmente deslocada a sua menção ao facto de ele ser do Porto. Até podia ser de Mirandela, para repescar o título de um post recente, não sei se deste blog.

Ninguém quer uma Lisboa a andar para trás, ninguém quer transformar o poprto de Lisboa numa "marina de iates".

Mas tem alguma ideia do impacto económico da Náutica de Recreio e do Turismo Náutico? Sabe que em Espanha 0,3% do PIB são gerados directamente pela náutica de recreio? E que essa percentagem sobe para 1% se incluirmos os efeitos induzidos?

Acha menosprezável?

Acha normal que um organismo que não é eleito tome decisões destas - basicamente porque foi criado num momento em que a Marinha Mercante Portuguesa era muito maior e agora se encontra com um excesso de pessoal ao qual não sabe o que fazer (38% das despesas da APL são com pessoal - isto num organismo que, lembremo-nos, serve para gerir portos e tem, portanto, equipamento e custos operacionais elevados. Ou devia ter, mas isso é outra história).

Acha normal que se escolha um concessionário "porque ele tem sido um bom concessionário até aqui" (verbatim)?

Enfim, não sou um fan cego de MST, mas acho que se lhe deve tirar o chapéu e reconhecer o mérito destqa iniciativa. Sem ele, a APL, a CML (coitada, apesar de não saber de nada) e o Governo teriam atingido o primeiro dos seus objectivos, que era colocar a população portuguesa - portuguesa, não lisboeta - perante o facto consumado.