Sábado à tarde solarengo em Lisboa, nas Amoreiras. Muitas e desvairadas gentes atravessam-se em destinos que se cruzam apenas nos corredores e se desvanecem quando se traspõem as portas da rua. Ex-banqueiros e seus advogados saiem a meio da tarde, indiferentes às compras e às músicas de Natal que não páram de tocar. Acusados de ter cometido infracções, terão que se defender, sem horário nem calendário. Gente feliz com sacos leva tudo à sua frente, num irritante autismo, quase agredindo com os seus sacos e as suas malas de compras quem tem o azar de não perceber que não pode pura e simplesmente andar nas Amoreiras mas sim fazer autênticas gincanas. No éter, oiço Pacheco Pereira explicar como as canções de Ágata são retratos sociais de uma época e falavam de problemas do dia-a-dia das pessoas e como esse era o segredo do seu sucesso. Fico a saber que não tem preconceito contra a música pimba. Oiço o "Mãe Solteira" e fico a saber pela milésima vez que posso ficar com com a casa, com o carro, mas não fico com ele. Em seguida Pacheco Pereira decreta a morte da filatelia com os novos costumes do e-mail e do sms e com a rarefacção da utilização das estampilhas postais, vulgo selos. Também eu fui filatelista amador e gostei de recordar os tempos do selo. Este programa de Pacheco Pereira no Rádio Clube foi-me da maior utilidade. Permitiu-me descansar da memória do homem que vira, minutos antes, tombar, redondo no chão, de inanição. Tão simples quanto isso. Um homem, já idoso, rosto marcado indelevelmente pelas agruras da vida, com um porte de uma dignidade incrível, que caía ao chão (vi duas vezes), apenas porque ainda não tinha comido nada ontem. Era apenas fome. Apenas. Recusou ambulância, recusou médico. Ajudado pelos seguranças do centro comercial em deriva humanitária, sentou-se numa cadeira esperando o regresso das forças que lhe permitissem andar. A Margarida, de lágrimas nos olhos, foi-lhe comprar um pacote de leite, que lhe deu a beber, antes de desabafar em português vernáculo contra o mundo que permite que estas pessoas estejam a viver assim. Foi o inesperado pequeno-almoço do homem por volta das cinco da tarde. Compreendo muito bem que a Margarida não sinta Natal. É realmente muito difícil. A fome daquele homem não estava escrita na cara, nem vem nas estatísticas da desigualdade social do INE de 2006 com que Sócrates discursou esta semana no debate parlamentar. Também não sei se aquele homem é funcionário público e vai ter acesso ao apoio que o Governo anunciou em exclusivo para funcionários públicos. Sei que no meu país a pobreza oculta-se mas vai matando lentamente.
(publicado no Tomar Partido)
Sem comentários:
Enviar um comentário