Em cidade nenhuma do mundo existe uma palavra de significacao analoga a esta: o fadista.
Ser fadista quer dizer:
ser um criminoso tolerado, agremiado civilmente, constituindo uma classe.
Pela sua genealogia social o fadista descende dos antigos espadachins plebeus que conquistavam, por meio de exame feito em valentia, o direito de cingirem a espada e de acompanharem com fidalgos bulhentos e tranca-ruas. No seculo passado existia ainda em toda a sua pureza esta raca de bravos de viella, sem officio nem beneficio, vivendo das esportulas da nobreza, apadrinhados por ella, frecheiros com as mulheres, soberboes e insolentes com os mesteiraes e com os mercadores, cobrindo as costas aos fidalgos nas excursoes nocturnas em que estes se divertiam espancando os transeuntes, escalando os muros dos quintaes e dos conventos, desarmando as rondas e acoitando os corregedores e os esbirros ao fundo dos becos tenebrosos e adormecidos.
Entre os alludidos fidalgos figurava como grao-mestre da ordem, como capitao da ala o serenissimo senhor infante D. Francisco, preclaro irmao do senhor rei D. Joao V, que Deus tenha em sua santa guarda.
D'esse interessantissimo principe, cujas tropelias crearam, durante um seculo, em volta das suas terras do Infantado, em Queluz, uma legenda de terror, conta-se este bello feito historico, que basta para mostrar o genero dos divertimentos da sua roda:
Vendo o augusto principe nas vergas de um navio um marinheiro que o saudava, quiz o infante experimentar, por ser mui curioso de balistica, se do logar onde estava poderia alcancar com um tiro aquelle homem que lhe fazia continencia meneando alegremente o seu gorro.
Fazendo em seguida a mais cuidadosa pontaria, e desfechando sobre o alvo, teve sua alteza o summo gosto de ver que o marinheiro se despegara da verga, que dobara no ar por entre as enxarceas e caira por fim estatalado no convez varado pela bala da serenissima escopeta.
Com o que o sr. infante houve um accesso de jubilo, como nunca se lhe vira, e que sua alteza houve por bem desafogar batendo as palmas e dando muitos uivos e pinchos, inequivocos signaes de uma illimitada alegria.
Mais tarde, com a illuminacao de Lisboa, devida ao intendente Pina Manique, e com a creacao da policia moderna, cessaram os recontros, as arruacas, os combates nocturnos da fidalguia com a villanagem lisboeta. Pela razao biologica de que toda a forca organica que se nao exerce se elimina, o antigo valentao plebeu deixou de ter valor mas continuou a conservar o espirito da facanha, da aventura, do amor illicito, da tavolagem e da vadiice, e tomou entao o nome de: fadista.
O fadista nao trabalha nem possue capitaes que representem uma accumulacao de trabalho anterior. Vive dos expedientes da exploracao do seu proximo.
Faz-se sustentar de ordinario por uma mulher publica, que elle espanca systematicamente.
Nao tem domicilio certo.
Habita successivamente na taberna, na batota, no chinquilho, no bordel ou na esquadra da policia. Esta inteiramente atrophiado pela ociosidade, pelas noitadas, pelo abuso do tabaco e do alcool.
E um anemico, um covarde e um estupido.
Tem tosse e tem febre; o seu peito e concavo, os bracos sao frageis, as pernas cambadas, as maos finas e pallidas como as das mulberes, suadas, com as unhas crescidas, de vadio; os dedos queimados e enegrecidos pelo cigarro; a cabelleira fetida, enfarinhada de poeira e de caspa, reluzente de banha.
A ferramenta do seu officio consta de uma guitarra e de um _santo christo_, que assim chamam technicamente a grande navalha de ponta e triplice calco na mola. E habitado por uma molestia secreta e por varios parasitas da epiderme. Um homem de constituicao normal desconjuntar-lha-ia o esqueleto, arrombal-o-ia com um soco. Elle sente isso e e traicoeiro pelo instincto do inferioridade.
Nao ataca de frente como o espadachim ou o pugilista, investe obliquamente, tergiversando, fugindo com o corpo, fazendo fintas com uma agilidade proveniente do seu unico exercicio muscular--as _escovinhas_.
Nao ha senao uma defesa para o modo como elle aggride: o tiro ou a bengala, quando esta seja manejada por um jogador extremamente dextro. A guitarra debaixo do braco substitue n'elle a espada a cinta, por meio da qual se acamaradavam com a nobreza os pimpoes seus ascendentes do seculo XVI. E pela prenda de guitarrista que elle entra de gorra com os fidalgos, acompanhando-os ainda hoje nas feiras, nas toiradas da Alhandra e da Aldeia Gallega, e uma ou outra vez nas ceias da Mouraria, onde depois da meia noite se vae comer o prado de _desfeita_, acepipe composto de bacalhau e graos de bico polvilhados de vermelho por uma camada de colorau picante.
Por effeito da tradicao na orientacao mental da sua classe elle procura ainda hoje como ha duzentas annos parecer-se e confundir-se pelo modo de trajar com os fidalgos ou com os que julga taes.
A classe dos fidalgos que tresnoitam hoje pelas tabernas e pelos alcouces de Alfama, que sao levantados bebedos dos becos mal afamados, que fallam em calao e que fazem trocas no Colete Encarnado e na Perna de Pau, esta classe de fidalgos, dizemos, compoe-se hoje principalmente de jovens burguezes febricitantes, filhos de honestos lojistas ou de pacientes alfaiates, desencabrestados da rotina paterna pela educacao do lyceu e do collegio nacional, escalavrados pelo alcoolismo e pelo mercurio, profundamente corrompidos, profundamente bestialisados.
O fadista imita esses senhores na escolha que elles fazem dos seus trajes de pandega. Usa como elles a bota fina de tacao apiorrado ou o salto de prateleira, a calca estrangulada no joelho e apolainada ate o bico do pe, a cinta, a jaleca do astrakan e o chapeo arremessado para a nuca pelo dedo pollegar, com o gesto classico do grande stylo canalha.
A guitarra, seu instrumento de industria e de amor, dedilha-a elle com um desfastio impavido, deixando pender o cigarro do canto do beico pegajoso, gretado e descaido; com um olho fechado ao fumo do tabaco e o outro aberto mas apagado, dormente, perdido no vago em uma contemplacao imbecil; o tronco do corpo caido mollemente para cima do quadril; a perna encurvada com o bico do pe para fora; o _cachucho_ da amante reluzindo na mao pallida e suja. Tambem canta, algumas vezes, apoiando a mao na ilharga, suspendendo o cigarro nos dedos, de cabeca alta, esticando as cordoveias do pescoco e entoando as melopeias do fado, em que se descrevem crimes, toiradas, amores obscenos e devocoes religiosas a Virgem Maria, com uma voz solucada, quebrada na larynge, acompanhada da expressao physionomica de uma sentimentalidade de enxovia, pelintra e miseravel.
De resto o fadista nao tem vislumbres de senso moral.
Explica os seus meios de vida pelo premio tirado na cautela de pataco que lhe foi vista na algibeira cebosa do collete. Na batota concilia-se com o furto e com o roubo; na esquadra da policia concilia-se com a mentira; nas suas convivencias do bordel concilia-se com a infamia; e as condicoes especiaes em que ama e e amado acabam por dissolver n'elle os ultimos restos d'essa dignidade animal, para assim dizer anatomica, commum a todos os machos.
- As Farpas (Fevereiro a Maio 1878)
terça-feira, agosto 28, 2007
O fadista
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