terça-feira, janeiro 16, 2007

A calçada portuguesa (cont.)

(continuação)
O argumento tem a sua pertinácia. É que, enquanto as veneradas pedrinhas se soltam, sujas de óleo de motor e travões, sob os nossos pés, os prédios – as nossas casinhas - esboroam-se vetustos e malqueridos. E quanto mais nós, pobres contribuintes autárquicos, tropeçamos nos passeios, mais os carros reluzentes e novinhos em folha tomam conta das nossas cabeças.
Resumindo muito: a nossa relação com as “calçadas” está toda de pernas para o ar.
Cá por mim, fazia-se já um concurso público, escolhia-se as 1000 melhores calçadas do país. Essas, deveriam ser convenientemente amadas e conservadas. Quanto às outras, seriam cobertas com alcatrão liso e antiderrapante para acabar com as manutenções milionárias e as entorses do pé esquerdo. Dir-me-ão: “Mas, e a tradição... os romanos... o património histórico...?! Seu iconoclasta!...”
Responderei: “Até meados do século XIX, não existiam em Portugal passeios públicos com ‘calçada à portuguesa’. Eram usados, em vários pátios e ruelas, seixos rolados do rio. Um ou outro palácio de Lisboa e arredores teria o centro do seu átrio atapetado com pedras facetadas, como rudimentares mosaicos decorativos. Um dia, certo governador do Castelo de São Jorge, o irrequieto e empreendedor capitão Eusébio Furtado, confrontado com o repugnante aspecto das ruelas da freguesia, decidiu inovar, disciplinar e educar: requisitou presos de delito comum e pô-los a partir pedra. Após o que (como agora também se diz), lhes ordenou que as enterrassem à maneira do macadame. Como se estava no princípio da coisa, os pavimentos ficaram muito certinhos, quase tão bons como os da “calçada à checa” que ornamentava e ornamenta as ruas da oriental Praga.
A cidade gostou do resultado, o governo de Fontes Pereira de Melo gostou da ideia de humilhar ladrões e indigentes pondo-os a trabalhar de cócoras à vista de toda a população, e o capitão Furtado foi contactado (e contratado) para navegações mais altas. Pôs os seus heróis vilões a martelar no Rossio e desenhou o passeio que focou conhecido como o ‘Mar Largo’. Depois, foi a glória do processo. Tudo o que era estrangeiro, à falta de poder dizer bem de uma cidade pobrezinha e indecisa entre ser estaleiro e ruína, aclamava a graça dos nossos ‘passeios de calçada ornamental’. De piropo em piropo, a cidade de Lisboa foi inchando de orgulho até à presente miséria. Em 1895, o executivo da Câmara determinava que ‘d’ora avante se empregue o empedrado à portuguesa nas construção e reconstrução dos passeios laterais das ruas’. A calçada universalizou-se, e nacionalizou-se, como O passeio público do império lusofónico, da Betesga ao Lobito, do Tamaris a Copacabana, e de Rio de Onor a Timor.
Quando o rectangular ‘Mar Largo’ do Rossio, viu as angulosas esquinas serem recortadas em redondo por um génio da Vereação do Trânsito com gosto por corridas de Fórmula Um, ninguém se deu conta que o destino dos passeios de “calçada à portuguesa” tinha novos traços. O que vemos hoje por aí são porventura os acordes finais do fado do empedrado”
.
Respondido está. Entretanto, reconfortemo-nos. O tapete calcário continua a fazer desenhos sob os pés de quem se aventura a percorrer a ocidental urbe lusitana, assinalada por matagais de esverdeados pilaretes. Como histórias aos quadradinhos.

Lembrete: em 1849, o calcetamento do “Mar Largo” do Rossio custou à Câmara Municipal de Lisboa a soma total de 37 réis. Hoje em dia, um metro quadrado de “calçada à portuguesa” não ornamental custa 18 contos de réis (90 Euros, se não me engano) e requer labor suado e ininterrupto de um calceteiro, de um batedor de maço e de um servente, durante 4 a 6 horas. A colocação de alcatrão anti-derrapante fica por uns meros 3 contos de réis por metro quadrado e faz-se em três tempos (mais ou menos uma hora e meia, julgo). Meu rico dinheiro. Meu rico tornozelo. Minha rica trotinette.
Manuel João Ramos para a revist Linhas Cruzadas 200?

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