quinta-feira, junho 19, 2008

ONDE PÁRA A ESQUERDA?

De súbito, o Estado viu-se confrontado com movimentações "inorgânicas", de camionistas e de pescadores, sociologicamente situados à direita. Se o poder dos sindicatos, sobretudo os associados à CGTP, tem demonstrado ser necessário acabar com o maniqueísmo e a ilusão de tábua-rasa, e inscrever, na esquerda, uma nova visão do futuro, as dificuldades emergem a cada momento. Numa entrevista à Rádio Renascença e ao Público, José Saramago recolocou a questão central: "À direita não lhe interessa as ideias, porque pode governar sem elas; à esquerda deviam interessar-lhe as ideias, porque não tem outra maneira de governar senão com elas (...) Sem ideias, a esquerda vai-se estiolando. E mais agora, quando a pretensa salvação da esquerda é a aproximação ao centro. Mas a aproximação ao centro é a aproximação à direita."

A esquerda não possui ideias de seu porque deixou de ler, de estudar, de reflectir, de analisar. Ajeitou o pretenso discurso a essa anomalia política, designada por "pragmatismo", e impôs a sua definição de democracia ao funcionamento dominante do capitalismo.

A direita, que é forjada nos aparelhos ideológicos de escolas e de universidades, não despreza as ideias, apenas não precisa delas, porque dispõe de veículos privilegiados, como, por exemplo, a cultura, as artes e os media para a transmissão das suas heranças de poder. As omissões e os esquecimentos deliberados, a rasura de nomes, a preeminência de autores "neutrais" sobre outros, inscrevem-se nesse quadro.

Há mais de 40 anos que a esquerda tem como garantia insensata a solidez da democracia. Maio de 68 abalou a convicção, pondo em causa o "estado de paz" e o capitalismo no seu próprio excesso. A perplexidade, não só na sociedade em geral, mas no interior do Partido Comunista Francês, incapaz de encontrar respostas fora das contidas na cartilha, conduziu a um modelo operatório que o sentenciou. Alberto Morávia, num livro importante, Diário Europeu, afirmou, então, que os partidos comunistas ficariam reduzidos a uma espécie de "travão social", cada vez mais com maiores dificuldades. A atitude interrogatória evaporou-se com a hegemonia do pensamento único. Com uma esquerda assim, a direita não precisa de ideias.

A complexidade dos acontecimentos mundiais, a derrocada do comunismo e a deterioração do socialismo abriram caminho à doutrina "liberal", assente no mais nefasto retrocesso histórico de que há memória. Porém, no que parece a força inexpugnável do "mercado" e do que lhe subjaz, consiste, também, a sua fragilidade. O Estado português arquejou de pavor. Bastou que um movimento "inorgânico" juntasse os elos. Uma vez mais, Sócrates não percebeu os sinais. E a esquerda, no geral, também não. Mas algo de novo abalou o esquema.


Baptista-Bastos


In Diário de Notícias

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