As recentes notícias em torno da hipotética transformação do Mercado do Bolhão, no Porto, num banal centro comercial desprovido de identidade própria, gerido por uma empresa privada de promoção imobiliária, colocam em cima da mesa reflexões vitais em torno das cidades portuguesas, e da extrema falta de atenção e de respeito que temos tido por elas.
O país sofre de um mal-estar difuso, a confiança nacional encontra-se minada, diz a Sedes. O PIB não arranca desde 2000. Abrem-se os jornais, vamos ao café, e as queixas e os azedumes do costume. Que se passa? Há, decerto, razões de conjuntura (nossas e globais) e há razões de estrutura (bem mais portuguesas). Mas entre todas as razões, a forma como temos tão menosprezado - política e socialmente - as nossas cidades é razão de primeira linha da nossa doença. E esta razão é cem por cento nossa. Diz-me que cidades tens, dir-te-ei quem és.
Qual tem sido o estado-da-arte das duas grandes cidades de Portugal? Numa palavra: fragmentação. Territorial, social, económica e política. Lisboa-concelho terá hoje cerca de 500 mil residentes, Porto-concelho à volta de 250 mil. Ou seja, apenas 19 e 17 por cento do total das respectivas metrópoles. A capital perdeu mais de 30 por cento da sua população em 25 anos, e 70 por cento das suas crianças - saindo, em média, 30 residentes por dia para ir morar nos concelhos limítrofes. Entretanto, e nos últimos 15 anos, o ritmo de construção na metrópole resultava numa média de 2,3 casas novas por hora! No Porto a situação não é melhor: parece que o número de residentes na Rua 31 de Janeiro, no seu centro burguês, é de... zero! A incrível desvitalização que se tem sucedido nas nossas duas maiores cidades não tem paralelo em toda a Europa urbana.
Eis assim o retrato do Portugal urbano, hoje: muita urbanização e pouca cidade. A desvitalização das cidades é resultado das nossas distracções, dos nossos corporativismos, do nosso eterno fechamento e falta de cosmopolitismo. E de uma classe política que, na sua grande maioria, não percebe os grandes desafios da contemporaneidade, envolta que anda nos seus interesses e reciprocidades próprias. No entanto, basta observar os vizinhos espanhóis: tanta força, tanta produtividade, e... cidades vivas, mercados vivos e cheios, uma cidadania activa e cosmopolita.
Nós cá andamos de alma inquieta. Muito Portugal vive entre um 5.º esq. tardoz, o jogo de cintura dos empregos precários, e uma vida automóvel entre a gasolineira e o hiper mais barato, a apenas 9,99 euros o quilo. É a economia, estúpido! E esquecemos a vital importância de ter espaços urbanos que permitam um bom ritmar dos nossos entornos sociais, dos nossos encontros amicais, das nossas relações de quotidiano e, afinal, do verdadeiro relançamento da nossa economia! E agora, estaremos igualmente prestes a desligar os nossos próprios corações? O que se passa com o Mercado do Bolhão, o mítico e rijo Bolhão, coração rítmico de uma cidade alma portuguesa, e que agora falece... num banal centro comercial? Tudo isto soa demasiado a nevoeiro, a ignorância, e soa sobretudo a demissão e a não arregaçarmos as mangas como devemos.
O país sofre de um mal-estar difuso, a confiança nacional encontra-se minada, diz a Sedes. O PIB não arranca desde 2000. Abrem-se os jornais, vamos ao café, e as queixas e os azedumes do costume. Que se passa? Há, decerto, razões de conjuntura (nossas e globais) e há razões de estrutura (bem mais portuguesas). Mas entre todas as razões, a forma como temos tão menosprezado - política e socialmente - as nossas cidades é razão de primeira linha da nossa doença. E esta razão é cem por cento nossa. Diz-me que cidades tens, dir-te-ei quem és.
Qual tem sido o estado-da-arte das duas grandes cidades de Portugal? Numa palavra: fragmentação. Territorial, social, económica e política. Lisboa-concelho terá hoje cerca de 500 mil residentes, Porto-concelho à volta de 250 mil. Ou seja, apenas 19 e 17 por cento do total das respectivas metrópoles. A capital perdeu mais de 30 por cento da sua população em 25 anos, e 70 por cento das suas crianças - saindo, em média, 30 residentes por dia para ir morar nos concelhos limítrofes. Entretanto, e nos últimos 15 anos, o ritmo de construção na metrópole resultava numa média de 2,3 casas novas por hora! No Porto a situação não é melhor: parece que o número de residentes na Rua 31 de Janeiro, no seu centro burguês, é de... zero! A incrível desvitalização que se tem sucedido nas nossas duas maiores cidades não tem paralelo em toda a Europa urbana.
Eis assim o retrato do Portugal urbano, hoje: muita urbanização e pouca cidade. A desvitalização das cidades é resultado das nossas distracções, dos nossos corporativismos, do nosso eterno fechamento e falta de cosmopolitismo. E de uma classe política que, na sua grande maioria, não percebe os grandes desafios da contemporaneidade, envolta que anda nos seus interesses e reciprocidades próprias. No entanto, basta observar os vizinhos espanhóis: tanta força, tanta produtividade, e... cidades vivas, mercados vivos e cheios, uma cidadania activa e cosmopolita.
Nós cá andamos de alma inquieta. Muito Portugal vive entre um 5.º esq. tardoz, o jogo de cintura dos empregos precários, e uma vida automóvel entre a gasolineira e o hiper mais barato, a apenas 9,99 euros o quilo. É a economia, estúpido! E esquecemos a vital importância de ter espaços urbanos que permitam um bom ritmar dos nossos entornos sociais, dos nossos encontros amicais, das nossas relações de quotidiano e, afinal, do verdadeiro relançamento da nossa economia! E agora, estaremos igualmente prestes a desligar os nossos próprios corações? O que se passa com o Mercado do Bolhão, o mítico e rijo Bolhão, coração rítmico de uma cidade alma portuguesa, e que agora falece... num banal centro comercial? Tudo isto soa demasiado a nevoeiro, a ignorância, e soa sobretudo a demissão e a não arregaçarmos as mangas como devemos.
"A cidade impõe-nos o terrível dever da esperança", escreveu um dia Jorge Luís Borges. Talvez seja, finalmente, tempo de tratarmos a sério de qualificar as nossas vidas nas nossas cidades. E não somente de as reabilitar, mas sim de as revitalizar. É diferente. Pode a vida, em Lisboa e no Porto e em todas as nossas cidades, afinal ser mais viva, mais diversa e mais criativa, mais próxima e mais curiosa? Claro que pode! É a qualidade de vida que temos, que define a nossa capacidade de sermos mais felizes, mais eficazes, mais competitivos, mais criativos, mais justos e mais humanos. Falo de qualidade de vida urbana. A cidade deverá ser, finalmente, uma das grandes razões e objectos da política.
Voltemos, assim, ao Bolhão: a vitalidade das cidades revela-se de forma plena nos seus mercados - espaços-espelho que são, por excelência, da sua identidade. Afinal, as primeiras cidades surgiram, há quase dez mil anos, como espaços de mercado, de troca e de intercâmbio. Daí que vermos mercados moribundos nos entristeça de particular forma. Ou que, pelo contrário, se constate que um bairro vivo, qualificado e acarinhado tenha sempre o seu mercado bem dinâmico - como acontece em Lisboa, em Campo de Ourique ou em Alvalade. O comércio com identidade é, seguramente, uma das componentes-chave da esperança na cidade.
Ora no Porto, pretende-se concessionar alguns dos seus mais excelentes espaços de dinâmica e identidade pública, passando-os para os arautos da mais-valia para o dia seguinte. Ao Bolhão, velho e doente, nem sequer pensam enviá-lo para um lar. É bem mais tragicómico que isso: querem deixá-lo na sala principal - reabilitada, evidentemente - "aquele é o avô", mas morto por dentro e de olhos taxidérmicos, azuis de vidro.
Na capital, e até recentemente, a coisa não foi mais fácil. Em tempo de ditadura tiraram-nos o Mercado da Praça da Figueira, símbolo vivo do nosso centro diverso e mercantil. Em tempo de democracia, foi agonizando o Mercado da Ribeira. A Praça da Figueira foi palco, entretanto, de novas ideias de reabilitação - mas de zero ideias de revitalização. O património de uma cidade continuou a ser visto apenas pelos espaços da pedra - e não pelos espaços das trocas, das relações, das ficções e dos abraços. Veja-se como se reabilitou o Mercado de Santa Clara, tirando-lhe os feirantes e deixando-o oco por dentro. Revelando bem a diferença abissal - inclusive no saber governar - entre reabilitar e revitalizar.
Lisboa e Porto, Ribeira e Bolhão, centros-coração de um país distraído, pulsam todavia. Alguma coisa mudará, estou certo. A pouco e pouco, parecem finalmente desenvolver-se, nas nossas cidades, novas formas de cidadania e mesmo de atenção social e política. As notícias vindas do Norte também nos mostram como a cidade, apesar de cansada, e perante os riscos de lhe plastificarem a alma, está a reagir.
Caro Bolhão, coração central de uma cidade histórica, tens todas as condições para renascer - e para te tornares no centro de uma verdadeira onda de revitalização urbana. Como mostra da identidade e dos produtos frescos de uma magnífica região como é o Norte. E como âncora central de vibração urbana. Basta a tua cidade querer. Até podes ser exemplo para, a médio prazo, se conseguir colocar nas agendas políticas, definitivamente, a cidade. Assim, e daqui do Sul, vai um forte abraço. Não desistas, luta para que não te plastifiquem, e regenera-te finalmente, como deves e como podes: com a gente da tua cidade, e para a gente da tua cidade. As tuas esperanças são as nossas esperanças. Investigador e professor universitário
João Seixas
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