Excerto do artigo
PUBLICO nº 6164 Domingo, 11 de Fevereiro de 2007
Praça de Espanha
Do Outro Mundo
Paulo Moura
Só quem se aproxima a pé pode ver e ouvir tudo isto. É uma cidade clandestina, palpitante de vida. Uma extensão imensa de lojas, cafés, pontos de encontro e de reunião, multidões em burburinho e grande azáfama. É o esplendor de um mundo subterrâneo, só revelado a quem ousa aproximar-se, apeado. "Bar nº 10", Bar nº 11", "Bar nº 15". "Loja das Camisas". "Quiosque Bem Me Quer". (...)" "Venha ver as nossas malas", chama uma rapariga de calças muito justas. "São Samsonite autênticas". Montras com sapatos, em vários andares, com altura de três homens. Camisas, fatos completos. Da mala aberta de um BMW preto, luzidio protótipo de tunning e ambição, sai música brasileira em altos berros. "Eu sem você vou morrêeee". Negras bamboleantes atravessam a correr as avenidas de tráfego intenso. Vendedores de drogas deslizam entre as ruelas das barracas. Ciganas apregoam os últimos saldos das roupas sempre em saldo. Grupos de indianos discutem ruidosamente junto à barraca dos "Couratos e Petiscos". Idosos bonacheirões jogam às cartas com vagabundos nas esplanadas improvisadas, ao lado de toxicómanos de olhos semicerrados e imigrandes do Leste à espera de ofertas de emprego ilegal.
Em frente brilham as letras de néon vermelho dos arranha-céus do Banco Popular, do Banco SantanderTotta, do El Corte Inglês. Atrás as luzes dos hotéis Novotel, Açores-Lisboa e Sana Malhoa.(...)
Em frente brilham as letras de néon vermelho dos arranha-céus do Banco Popular, do Banco SantanderTotta, do El Corte Inglês. Atrás as luzes dos hotéis Novotel, Açores-Lisboa e Sana Malhoa.(...)
Uma cidade contempla outra cidade, no escuro. A cidade pobre gosta da cidade rica e, sempre que pode, nasce e cresce junto dela, dentro dela. Não nas periferias. Aproveita-se dos hiatos esquecidos, da velocidade e do alheamento. Instala-se. Prolifera em esquemas e manigâncias, em economia paralela, em tráficos, em romarias, festarolas e rituais.
Esta é provavelmente a maior praça do país, à custa de um paranóico estratagema: mais do que uma praça, é uma encruzilhada de autoestradas. É uma praça para quem tem pressa, o que faz dela o oposto de uma praça: não é um local de encontro mas de fuga. Por esta praça voa-se, não se passa.
Há lugares assim, sobranceiros, ausentes. Existem em estado de referência, de alusão. Diz-se: "Vai-se pela Praça de Espanha...", "Fica ali para os lados da Praça de Espanha..." Não se diz: "Encontramo-nos na Praça de Espanha". Muitas vezes estes lugares têm dois rostos. Um deles invisível. Como se houvesse um espaço vazio no coração arrogante da cidade. Um espaço oculto, de tão exposto. Era uma praça grande demais e outra cidade alojou-se-lhe nas entranhas. Quem voa rumo a Cascais ou à ponte 25 de Abril, à alta ou à baixa de Lisboa, não vê a cidade que emergiu nos interstícios das grandes vias. Nas entrelinhas dos grandes destinos. É preciso parar. E passo a passo caminhar até à cidade desconhecida. A maior cidade do país.(Jornalista
Esta é provavelmente a maior praça do país, à custa de um paranóico estratagema: mais do que uma praça, é uma encruzilhada de autoestradas. É uma praça para quem tem pressa, o que faz dela o oposto de uma praça: não é um local de encontro mas de fuga. Por esta praça voa-se, não se passa.
Há lugares assim, sobranceiros, ausentes. Existem em estado de referência, de alusão. Diz-se: "Vai-se pela Praça de Espanha...", "Fica ali para os lados da Praça de Espanha..." Não se diz: "Encontramo-nos na Praça de Espanha". Muitas vezes estes lugares têm dois rostos. Um deles invisível. Como se houvesse um espaço vazio no coração arrogante da cidade. Um espaço oculto, de tão exposto. Era uma praça grande demais e outra cidade alojou-se-lhe nas entranhas. Quem voa rumo a Cascais ou à ponte 25 de Abril, à alta ou à baixa de Lisboa, não vê a cidade que emergiu nos interstícios das grandes vias. Nas entrelinhas dos grandes destinos. É preciso parar. E passo a passo caminhar até à cidade desconhecida. A maior cidade do país.(Jornalista
Maria Isabel Goulão
4 comentários:
A Praça de Espanha bem que pode ser considerada emblemática dessa cidade desigual, de passagem, feita de contrastes, de mosaicos dissonantes, misturando caravanas e sedes de empresas, painéis publicitários com outros ritmos e cores, pessoas e automóveis...a poucos metros, lado a lado mas ignorando-se mutuamente.
De um lado, a extensa ilha verde, informe e fragmentada, recortada em todas as direcções, para facilitar o atravessamento automóvel, vista em velocidade, ou, ocasionalmente, num momento de pausa, durante o tempo do sinal...
À volta, teatros desgarrados, ou, desterrado e compacto, o centro comercial de cobertura de chapa, burburinho de mil e uma vendas, a lembrar os kasbah! contraponto de outras práticas e lugares(?)
Que bom poder ler aqui este excelente artigo do jornalista Paulo Moura publicado ontem no Público, que não li porque estive a exercer serviço público.
Obrigada ao autor e à divulgadora.
Eça diria melhor?
Bonito texto a retrataruma feia realidade.
(possível?) contracção de 'retrato' e 'caruma' citadina (!?) numa associação livre com o que se observa(va) nos bucólicos pinhais, as camadas de húmus que repousavam sob a copa das árvores em lenta decomposição!
Só de imaginar que entre os potenciais 'fertilizantes' desse sítio, esteve quase a ser 'plantada' uma proposta ímpar, uma escultura urbana, já projecto-maqueta, de autoria do mais internacional e reconhecido dos arquitectos portugueses, Álvaro Siza Vieira, para a futura Fundação-Museu Cargaleiro(!?) e... sem se ponderar bem o que se tinha em mãos, opta-se(?) por mais um hotel ou bloco de escritórios... que mais há a dizer!?
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