quarta-feira, dezembro 19, 2007

A INSTRUÇÃO DO MEDO

Os portugueses estão a ser espreitados por todos os sítios, lugares e ângulos, e esta estrutura muito moderna, eficaz e internacional de "segurança" parece torná-los extremamente felizes e, até, levemente excitados. O olho electrónico quase se tornou numa expressão artística: possui todos os moldes, formas, cores e tamanhos. Nos bancos, nos elevadores, nos hospitais, nos bairros mais elegantes, nos corredores dos hotéis, nas repartições, nos Correios, à esquina, no cairel dos edifícios, nas auto-estradas e nas ruas, de dia e à noite, com aviso e sem aviso - lá está ele. Quem sabe se a vigília incide sobre os amores clandestinos, como no belíssimo poema de Daniel Filipe? Asseguram-me que, em breve, estará nos cemitérios. Não por causa dos habitantes; sim para dissuadir quem ouse profanar o pétreo sono dos mortos.

O olho incisivo, inclemente, gélido, implacável, informa, não se sabe bem a quem, daquilo que, modestamente, estamos a fazer. As nossas minudências quotidianas: contemplar os movimentos do andar de certas mulheres, observar os livros expostos em montras, recalcitrar contra a vida infame, são decifradas como sujeito de intriga e apreensão públicas. E "ninguém sabe quantas câmaras nos andam a filmar todos os dias", diz o Expresso num bem organizado texto de Filipe Santos Costa.

José Magalhães tranquiliza-nos: "Isto não é o advento do Robocop." O sossego das almas dura pouco. O secretário de Estado adverte: "Estamos a caminho de uma sociedade onde a videovigilância é utilizada por cada vez mais entidades." Está aqui muito bem fixado o que nos espera. O lirismo das ruas, a épica das noites molhadas em balcões de bares, a frenética agitação triangular entre o Bairro Alto, 24 de Julho e Docas deixam, ou já deixaram, de ser o poema que se procura para se transformar numa perpétua homenagem ao império da desconfiança.

A sociedade, num futuro muito próximo, reduzirá o seu já limitado espaço de liberdade a uma instância insistentemente policiada. Não haverá sociedade como intervenção cultural, relação com o contrário, subdivisão de grupos de interesses, coexistência de sinalizações alternativas. Ser continuamente vigiado liquida o fundamento das instituições democráticas, o qual oscila entre o tratamento igualitário e o tratamento diferenciado. Impossível escapar ao reconhecimento de que caminhamos para uma nova e diferente ditadura, dissimulada em leis de "segurança", de "ordem" e de "autoridade". Não há lugar para o exercício das "referências", porque se deixou de admitir a alteridade. Uma das características sociais reside no direito do indivíduo a não ser "massa", e a recusar a rigidez identitária que a vigilância (pelo medo que lhe subjaz) sugere, impõe e inculca.

Não sorria. Está a ser filmado.

Baptista-Bastos


In Diário de Notícias

2 comentários:

Anónimo disse...

Bom, «novos» comportamentos e modos de vida, incluindo o terrorismo, colocam problemas a que a sociedade, sobretudo se se tratar de um regime democrático, não consegue dar soluções mantendo as liberdades individuais como as entendíamos.

Eu também não gosto de ser filmado. Mas se me seguirem os movimentos dos cartões de plástico e as chamadas do telemóvel e a vigilância nas estradas, sabem facilmente por onde andei e o que fiz.

Colocar as coisas no plano da placidez que havia e deixou de poder haver é lirismo, para não usar outros termos.

Anónimo disse...

Como escrito no comentário anterior, entre o hotel que paguei com um cartão, a portagem que passei com a via verde, a chamada que fiz com o telemóvel e o dinheiro que levantei no "multibanco", qualquer amor clandestino - ou outra coisa que a alguém possa interessar, da minha vida, fica facilmente escancarado. Sem uma câmara.

De maneira que, somado o deve e o haver da videovigilância, ela que venha. Para se ser coerente e pretender uma sua severa restrição (e no plano filosófico entende-se a posição), muitas outras restrições haveria que pretender. Muitos riscos haveria que - ainda mais - banalizar. Demasiadas e demasiados, se calhar, para o próprio, legítimo e já bem sedimentado conforto (quase "direito adquirido") de quem contra ela escreva.

É pena. Mas é assim.

Costa