AINDA OS EXCÊNTRICOS DA BAIXA E CHIADO
Um leitor enviou-me um e-mail a perguntar se hoje ainda havia, pelo Chiado e pela Baixa, excêntricos e figuras características como o "Burnay de pataco", o "procurador-geral da coroa" que corria os cafés e restaurantes da zona a pedinchar moedas de cinco tostões, nas primeiras décadas do século XX, e que levantei do pó dos mortos na crónica da semana passada.
Penso bem que não. O último excêntrico genuíno, digno desse nome, que pisou as calçadas do Chiado e da Baixa, deve ter sido Arnaldo Ferreira, o grande pintor de Lisboa, o "noivo eterno" sempre irrepreensivelmente vestido, que sobressaltava os clientes da Bertrand, as senhoras do chá e dos bolos da Bénard e os turistas de calções e máquina fotográfica ao pescoço, com os seus gritos de "Canalhas! Biltres!", dirigidos sabe-se lá a quem. Morreu há oito anos e não teve sucessor.
Também já lá estão os dois tontinhos dos Restauradores e do Rossio, o que fazia ordem unida no perímetro entre o Éden (hoje um hotel) e o Condes (hoje Hard Rock Cafe), com caricas coladas na lapela do casaco a fazer de condecorações, e o que relatava alto os jogos de futebol, completos e com todos os jogadores certos, pondo uma lata de conservas ao ouvido a fazer de transístor e sempre a correr de um lado para o outro. Mas já ninguém ouve os relatos da bola em transístores, nem sequer os tontinhos.
Um dos maiores excêntricos dos tempos de glória da Baixa e do Chiado - e amparo-me de novo em O Chiado Pitoresco e Elegante, de Mário Costa - até foi colaborador regular do DN. Francisco Leite Bastos, jornalista e dramaturgo, entre escrever peças e vir ao jornal entregar a sua crónica, andava caricatamente vestido e corria as ruas metido num carrinho puxado por um cavalo cadavérico, uma lamentável pileca. Leite Bastos detinha- -se em tudo que era taberna para escorropichar copos de vinho, e também dava a beber ao animal, que abraçava e beijava, como se fosse um familiar próximo ou um amigo do peito. Um dia, abriu uma casa de penhores que rapidamente faliu, porque o principal cliente era ele.
Outro, erudito ilustre, era o arqueólogo e numismata Teixeira de Aragão. Deslocava-se de cavalo para toda a parte, e era a cavalo que entrava em casa, para espanto dos transeuntes e grande gozo da vizinhança. Um dia que tinha marcado um encontro à porta de casa com um amigo, circunspecto professor da Universidade de Coimbra, atrasou-se e, quando chegou, já tinha a visita à espera dele. Teixeira de Aragão desceu da montada, abriu a porta, mandou o esbugalhado amigo entrar e depois voltou a montar no cavalo e entrou ele, para não fugir à regra.
E que dizer do boémio, elegante e desocupado de profissão Domingos Ardisson? Tinha um tal orgulho na sua barba loira, que nos dias em que ventava muito, e para que não ficasse "desarrumada", metia-a num saco que atava à cabeça, e assim se passeava pela Baixa e pelo Chiado, a cumprimentar a gente conhecida.
Sombras e fantasmas de patuscos, pândegos e castiços de uma Lisboa que já passou.
Eurico de Barros no DN
(Isabel G)
Um leitor enviou-me um e-mail a perguntar se hoje ainda havia, pelo Chiado e pela Baixa, excêntricos e figuras características como o "Burnay de pataco", o "procurador-geral da coroa" que corria os cafés e restaurantes da zona a pedinchar moedas de cinco tostões, nas primeiras décadas do século XX, e que levantei do pó dos mortos na crónica da semana passada.
Penso bem que não. O último excêntrico genuíno, digno desse nome, que pisou as calçadas do Chiado e da Baixa, deve ter sido Arnaldo Ferreira, o grande pintor de Lisboa, o "noivo eterno" sempre irrepreensivelmente vestido, que sobressaltava os clientes da Bertrand, as senhoras do chá e dos bolos da Bénard e os turistas de calções e máquina fotográfica ao pescoço, com os seus gritos de "Canalhas! Biltres!", dirigidos sabe-se lá a quem. Morreu há oito anos e não teve sucessor.
Também já lá estão os dois tontinhos dos Restauradores e do Rossio, o que fazia ordem unida no perímetro entre o Éden (hoje um hotel) e o Condes (hoje Hard Rock Cafe), com caricas coladas na lapela do casaco a fazer de condecorações, e o que relatava alto os jogos de futebol, completos e com todos os jogadores certos, pondo uma lata de conservas ao ouvido a fazer de transístor e sempre a correr de um lado para o outro. Mas já ninguém ouve os relatos da bola em transístores, nem sequer os tontinhos.
Um dos maiores excêntricos dos tempos de glória da Baixa e do Chiado - e amparo-me de novo em O Chiado Pitoresco e Elegante, de Mário Costa - até foi colaborador regular do DN. Francisco Leite Bastos, jornalista e dramaturgo, entre escrever peças e vir ao jornal entregar a sua crónica, andava caricatamente vestido e corria as ruas metido num carrinho puxado por um cavalo cadavérico, uma lamentável pileca. Leite Bastos detinha- -se em tudo que era taberna para escorropichar copos de vinho, e também dava a beber ao animal, que abraçava e beijava, como se fosse um familiar próximo ou um amigo do peito. Um dia, abriu uma casa de penhores que rapidamente faliu, porque o principal cliente era ele.
Outro, erudito ilustre, era o arqueólogo e numismata Teixeira de Aragão. Deslocava-se de cavalo para toda a parte, e era a cavalo que entrava em casa, para espanto dos transeuntes e grande gozo da vizinhança. Um dia que tinha marcado um encontro à porta de casa com um amigo, circunspecto professor da Universidade de Coimbra, atrasou-se e, quando chegou, já tinha a visita à espera dele. Teixeira de Aragão desceu da montada, abriu a porta, mandou o esbugalhado amigo entrar e depois voltou a montar no cavalo e entrou ele, para não fugir à regra.
E que dizer do boémio, elegante e desocupado de profissão Domingos Ardisson? Tinha um tal orgulho na sua barba loira, que nos dias em que ventava muito, e para que não ficasse "desarrumada", metia-a num saco que atava à cabeça, e assim se passeava pela Baixa e pelo Chiado, a cumprimentar a gente conhecida.
Sombras e fantasmas de patuscos, pândegos e castiços de uma Lisboa que já passou.
Eurico de Barros no DN
(Isabel G)