terça-feira, maio 20, 2008

"A vingança do automobilista perante a passadeira"

A vingança do automobilista perante a passadeira - PUBLICO 20.05.2008, José Vítor Malheiros

Os condutores fingem não ver o peão que atravessa impune aquele pedaço de alcatrão

Segundo a PSP, ocorreram em Lisboa nos primeiros quatro meses deste ano 266 atropelamentos, que causaram 22 feridos graves e 267 ligeiros. Se morreu algum foi depois, no hospital, não entrou nesta estatística. O curioso nestes dados é que nada menos de 101 destes atropelamentos - 38 por cento - tiveram lugar em passadeiras.
Se a proporção de pessoas que atravessam as ruas nas passadeiras fosse de 38 por cento, isso quereria dizer que o risco de atravessar na passadeira ou fora dela é semelhante. Mas se a percentagem de pessoas que atravessa nas passadeiras for inferior a essa (como é provável), isso significará que o risco de atravessar uma rua pela passadeira é superior ao de atravessar fora dela.
Qualquer das conclusões é inaceitável (o risco de atravessar a rua na passadeira deveria ser nulo ou perto disso) mas não podem deixar de nos fazer pensar. O que levará um automobilista a atropelar mais facilmente um peão cumpridor que um peão desrespeitador?
As razões são fáceis de identificar para o olhar atento. Para o automobilista vulgaris, o peão que atravessa na passadeira é um betinho moralista e presunçoso. A primeira tentação é por isso a chicuelina castigadora, mas, quando a manobra é impossível, o carro é obrigado a estacar, engolindo o orgulho, perante o olhar vitorioso do peão sobre as riscas. E há automobilistas que não suportam esse olhar. Os automobilistas vencidos, obrigados a parar na passadeira como bois mansos, fingem que pararam porque tinham de parar de qualquer maneira e não por causa da passadeira, como Sócrates que nunca mais ninguém apanhará a fumar não por causa da lei mas porque vai deixar de fumar. Os condutores olham o horizonte ou arrumam o porta-luvas, fingem não ver o peão que atravessa impune aquele pedaço de alcatrão que se está mesmo a ver que é para carros. A repetição destas experiências não pode deixar de criar uma surda fúria assassina, às vezes inconsciente, que se traduz nos 38 por cento. Quem pensam eles que são? A maior parte destes, diga-se, são idosos, e só são atropelados nas passadeiras porque abrandam estupidamente o passo, tolhidos pelo terror, fazendo com que os rigorosos cálculos dos condutores saiam furados: o retrovisor, em vez de lhes roçar as nádegas, desfaz-lhes o sacro.
Os peões que atravessam por todo o lado merecem outra consideração, esses não são peões, são matadores, se fossem automobilistas fariam a sua quota-parte de peões, cortariam orelhas, não se escondem em burladeros e passadeiras, correm riscos, destes não precisamos de desviar o olhar, não nos acusam de nada, nós é que os poupamos (às vezes, porque faltam os restantes 72 por cento). Por estes há outro respeito.
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Bolds meus num excelente texto do José Vitor Malheiros.
(ISABEL G)

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