sexta-feira, julho 13, 2007

APOLOGIA DA ÉTICA DE RESPONSABILIDADE *

Está a chegar ao fim a (longa) campanha eleitoral para a Câmara de Lisboa. O cansaço dos jornalistas, dos eleitores e dos candidatos é evidente e talvez explique muito do que se passou nos últimos dias. É conhecida a minha posição de apoio a António Costa e é sabido que foi ensaiada esta semana em relação a mim uma tentativa de assassinato de carácter. Fica feito o registo de interesses e o pedido para que ponderem o que vou escrever à luz destes factos.
De um modo que não é inovador, mas que se está a revelar cada dia mais relevante, o escrutínio pelos “media” dos que aceitam desempenhar cargos públicos está entre nós e veio para ficar. É um importante elemento de Cidadania e de participação democrática e pode funcionar como um factor objectivo que limite abusos e ilegalidades, quanto mais não seja porque o medo pode por vezes ser o sucedâneo da ética.
É assim noutros países e também neles é possível afirmar que este tipo de bombardeamento tem efeitos colaterais, o menor do quais não é por certo a dificuldade em encontrar quem esteja disponível para se entregar a causas públicas, por legitimamente não querer, ao mais pequeno pretexto ser arrastado pelas ruas para gáudio da populaça. Mas o maior dos efeitos colaterais é sem dúvida o sucesso de algumas tentativas de injusto assassinato que, mesmo quando sossobram, provocam mágoa e sofrimento por vezes indizíveis.
Apesar disso, apesar de tantos exemplos que poderia trazer á colação, como o que sofreu Francisco Sá Carneiro na campanha ignóbil de que foi vítima sobre pretensas dívidas à banca e sobre as suas opções pessoais sentimentais, que acompanhei de muito perto, apesar disso considero que é um sinal de modernidade e não de arcaísmo este tipo de cultura política.
No entanto, em Portugal faltam alguns elementos essenciais para o adequado funcionamento deste sistema de escrutínio. A começar pela ética de responsabilidade e por um sistema de sanções políticas e morais (para não falar das jurídicas, nos casos mais graves), que pondere e contrabalance a utilidade do sistema de escrutínio. Em sociedades mais evoluídas, a análise por vezes dura aos protagonistas é feita em regra por pessoas e entidades que, elas próprias, se submetem a tal escrutínio, que se consideram responsabilizadas pelos efeitos colaterais e que, por isso, assumem as maiores cautelas antes de utilizar publicamente factos que podem ser de interesse público. O estudo do caso “Watergate” permitirá perceber melhor o que digo.
Uma segunda falha recorrente em Portugal é a fácil e irresponsável passagem da fronteira que separa o facto do comentário sobre o facto. Como dizia um velho amigo meu, são sempre os adjectivos e nunca os substantivos o que ofende. Muitas vezes, vezes de mais, os protagonistas confrontados com factos optam por os apimentar e intensificar com registos que os factos não comportam e, assim, entram por terrenos inadequados perdendo a razão que eventualmente pudessem ter.
Um terceiro problema é uma decorrência do ritmo em regra frenético dos acontecimentos públicos aliada à tendência bem portuguesa de indiferença perante o bom nome e a honra dos outros e ao pouco valor que afinal se dá à ética em Portugal. Somos uns vidrinhos quando se trata de algo que nos atinja e, ao mesmo tempo, gozamos lubricamente com acusações feitas aos outros. É por isso que nunca se consegue ver corrigido realmente o que de errado foi publicado, até porque o público que lambera os lábios glutões perante a denúncia é o mesmo que nunca lê a correcção do erro.
Numa palavra, um sistema de escrutínio dos protagonistas típico de sociedades evoluídas exige ... sociedades evoluídas. Sem uma cultura cívica disseminada, sem uma ética de responsabilidade vivida, sem um sentido de respeito pelos outros, sem ponderação e equilíbrio, sem sanções para os prevaricadores, numa sociedade que continua – como no tempo de Camões – a ter a inveja como energia vital, o sistema de escrutínio funciona mal.
Veja-se a título de exemplo o que se passou em relação ao Arquitecto Manuel Salgado. Até se ter candidatado, era incensado por todas as áreas políticas e todos os comentadores e não se podia ler uma crítica ou uma censura (que não fosse a resposta ressabiada de um candidato há anos) à sua capacidade técnica e ao seu rigor. Candidatou-se a 6 anos de serviço público e vai ter de viver com níveis de rendimento muitissimo inferiores ao que usufruiu até agora. Vendeu a posição que tinha no seu atelier de arquitectura. Assumiu o compromisso de que esse atelier não aceitaria trabalho em Lisboa, o que – com todo o respeito – não é o mesmo que por exemplo assumir isso em relação a Freixo de Espada à Cinta. Fez isto num País habitado por conflitos de interesse, por favorecimentos, por combinações lesivas do interesse geral, que passam não noticiadas. Num acto de Cidadania resolveu dar à Cidade o seu “konw how” com sacrifícios financeiros elevados.
O Dr. Marques Mendes – numa estratégia de óbvio desespero – insinuou que Salgado vai para a Câmara para beneficiar com especulação imobiliária em relação ao Aeroporto da Portela (apesar dele não ser desactivável em menos de 10 a 12 anos!). A acusação mereceu parangonas. Revelou-se falsa e injusta, foi precipitada, difamatória. Marques Mendes não apresentou provas, tentou desviar o assunto, confirmou implicitamente que mentira e não pediu desculpas. No dia seguinte o tema já era outro, era este articulista, numa aparente estratégia de todos os dias se inventar um caso, sabiamente plantado nos “media”. E já ninguém estava disponível para prestar atenção à confirmação de que o líder do PSD falhara e lançara pazadas de lama que não eram merecidas.
Que fazer? Acabar com o escrutínio? Não. Pelo contrário. O que é essencial é apelar cada dia mais para uma ética de responsabilidade e para o aprofundamento de uma Cultura de Cidadania. Assim, quem sabe, talvez um dia Portugal venha a mudar.

José Miguel Júdice

* In Público

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