"Na simplicidade rústica do Piodão, o Rossio liberta-se das suas pombas turísticas, que afinal não voam e só servem para sujar o mosaico, do seu chafariz decorativo, fonte inútil que não lhe mata a sede, dos seus cafés ruidosos, onde não consegue esquecer as misérias; na Avenida da Liberdade, o Piodão despe o surrão, escapa-se da missa dominical, e chega a sentir-se janota e civilizado. O abismo não é, pois, intransponível.
Talvez mesmo que lá no fundo, no fundo da desavença, não haja senão sentimento de culpa comum, a mesma mágoa inconfessada de uma desgraça que atingiu toda a nação, mas que tem na capital o seu estigma indelével. Uma espécie de recalcamento freudiano que espera a sua hora de consciencialização.
Enamorado de si, morreu Narciso à beira de um regato onde se mirava. E as ninfas, compadecidas da sua desgraça, pediram aos deuses que o transformassem numa flor.
Narcisos que fomos também um dia, esperava-nos um destino igual ao do filho de Céfiso. Lisboa é essa flor em que o destino nos transformou; o Tejo, o rio onde nos perdemos a contemplar a própria imagem."
Miguel Torga, sobre Lisboa, em "Portugal".
(publicado no Tomar Partido)
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