terça-feira, julho 15, 2008

Público & Privado

Olho para a mulher dentro da viatura com o meu melhor ar de reprovação (que inclui ligeiro abanar de cabeça) e por instantes julgo vislumbrar meio segundo de sentimento de culpa. Foi decerto impressão minha. Que se dane, deve ter pensado a criatura enquanto abalroava um pequeno espaço ajardinado: chamar relva a isto é um eufemismo e nesta curva jeitosa à sombra não passam camiões.
Recordei a idosa numa rua de Viena que assomou à janela do seu rés do chão para afugentar um alienígena que ousou deixar o cão emporcalhar os canteiros da rua. Devo dizer, por experiência própria, que a prática da dissuasão é totalmente desaconselhável por estes lados. As nossas santas mães não merecem o enxovalho a que estão sujeitas.
Entretanto, vejo-a entrar para o cabeleireiro com andar desembaraçado. Suspeito que trata com carinho as plantas da varanda e ajuda os filhos nos trabalhos sobre o Estudo do Meio, aqueles que ensinam os meninos a ser amigos do ambiente e a ajudar os velhinhos a atravessar as ruas. Mais abaixo, diversas viaturas galgaram os passeios junto à farmácia, uma dúzia de piscas estão encostadas às caixas multibanco e um cavalheiro galhofeiro ao telemóvel faz uma tangente a quem circula na passadeira.
Confesso que nunca percebi bem esta espécie de comportamento bipolar do zelo pelo privado e o desprezo pelo espaço público. Conheço muito boa gente que reclama constantemente dos serviços públicos, mas não se maça a denunciar uma viatura abandonada, uma fuga de água na rua nem a necessidade de mais iluminação. Porventura alguns dos cidadãos barricados em habitações de esmerada limpeza e arrumação serão os mesmos que não hesitam em sacudir a toalha das refeições e os cigarros para o terraço do vizinho, bloquear com o carro o acesso à porta comum, despejar lixo fora dos ecopontos, lançar os máximos ao condutor da frente, fazer gestos com os dedos quando não se circula à velocidade pretendida, permitir que os canitos emporcalhem a entrada do prédio ou em não descarregar o autoclismo das casas de banho públicas.
Desgraçadamente, para alguns destes problemas, além de uma grandessíssima falta de educação ou enorme javardice, as causas são bem conhecidas: a inoperância da polícia, a lentidão sofrida e desesperante da justiça, a incúria dos serviços camarários, uma longa tradição de amnistias, "habitats" estupendos para a germinação de sentimentos de impunidade. Mas a desresponsabilização das instituições é fraco consolo. "A calçada portuguesa está uma lástima", queixava-se no outro dia um cidadão depois de aterrar o seu pesado jeep num passeio junto a parquímetros vazios.
Não os compreendo, mas isto da cidadania tem dias que é uma canseira e, vendo bem, nada garante que resulte. No entanto, andamos por aqui e por outros lados.

2 comentários:

**** disse...

O comportamento bipolar de que tão bem fala, resulta do egoísmo atroz que há nas pessoas, não obstante serem mal formadas e imperar a redonda falta de civismo.

Tem razão cansa, cansa horrores quando sentimos que se luta sózinho, mas a inércia é inimiga da sanidade mental... e publica! (:

Por isso continue, pela saúde dos que consigo pela mesma causa almejam!

Anónimo disse...

A minha casa....a minha rua....a minha cidade. Podem todas estar no mesmo plano....

JA