Quando, pouco depois do 25 de Abril, se estreou em Portugal A Religiosa, de Jacques Rivette, foi o Quarteto que recebeu o filme "maldito" (esteve um tempão em cartaz). Calhou o próprio Rivette vir a Portugal e Bandeira Freire acolheu-o cortesmente no cinema. Mas o cineasta francês lá viu (ou julgou ver) qualquer coisa mal na projecção, e começou a moer o juízo a Bandeira Freire, que não conseguia divisar nada de errado na forma como o filme estava a ser mostrado. Até que, perdendo a paciência, virou-se para Rivette, apontou-lhe a porta do cinema gritando "Dehors! Dehors!" ("Rua!Rua!"), e conduziu-o para fora do edifício, meio empurrado, meio arrastado. Quando alguém lhe disse, "Ó Pedro, mas tu puseste o Rivette na rua? Estás maluco?", Bandeira Freire respondeu: "Pois pus! Ele é o Rivette, mas o cinema é meu!".
Numa das orelhas do seu livro de memórias Entrefitas e Entretelas (ver caixa), o também poeta, autor de teatro, rádio, televisão e de livros de máximas, argumentista, realizador (de duas curtas metragens), actor, letrista de canções, fundador da Livraria Opinião, jurado de festivais de cinema, grande amante de cinema e bon vivant consumado, deixou a biografia feita de forma tão completa e concisa, que é impossível não nos auxiliarmos das suas próprias palavras.
Nascido em 1939, antes da II Guerra Mundial, Pedro Bandeira Freire era, por isso, "material robusto e do melhor". Após quase ter terminado "com esforço e tenacidade" o Colégio Miitar (era o "57"), licenciou-se em "Gestão de Sentimentos", com "Mestrado de Relações Públicas" e doutoramento "em Filosofia de Vida. Não tendo habilitações para fazer alguma coisa de útil (o mesmo é dizer que não sabia nada de nada), dedicou-se a fazer um pouco de tudo. Uma das suas grandes qualidades - a preguiça!". Trabalhou em distribuidoras de filmes e na TAP, escreveu em jornais e revistas, fundou uma livraria e um cinema - o Quarteto, onde divulgou anos a fio o melhor do cinema mundial e foi, durante muito tempo, campeão absoluto da cinefilia e da cultura cinematográfica -, publicou livros, peças de teatro ("12 peças e meia, mais 4 do que o filme do Fellini", a Sociedade Portuguesa de Autores vai lançar uma inédita na sua colecção de teatro), e foi "amestrado, caricaturado amado e odiado, representado, jurado, letrista, premiado, censurado, enganado e fez os possíveis, embora sem obter resultados, para ser feliz". E gozou muito, sempre, imensamente, a vida, tanto como os filmes.
Há cerca de um mês, em plena "crise de consumismo e de cinefilia", Pedro Bandeira Freire entregou as chaves do Quarteto, após as quatro salas da Rua Flores do Lima terem sido fechadas pela Inspecção-Geral das Actividades Culturais, por apresentarem falhas ao nível da segurança. (Espera-se que o Quarteto não tenha o triste destino de tantas outras salas de cinema de Lisboa, e que quem de direito faça o que é preciso, e se exige, para o manter aberto, a passar filmes e com público).
O corpo de Pedro Bandeira Freire está em câmara ardente na Galeria Carlos Paredes da Sociedade Portuguesa de Autores, de onde sairá amanhã, às 12.00, para o Cemitério dos Olivais. Vai custar mesmo muito não o voltar a encontrar e ouvir dizer: "Tás bom, ó doutor? Tens visto alguma coisa de jeito?".
Eurico de Barros
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