quinta-feira, abril 17, 2008

Fundador do Quarteto gostava do cinema e da vida acima de tudo

Pedro Bandeira Freire, que morreu ontem no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, aos 68 anos, na sequência de um acidente vascular cerebral sofrido há alguns dias, e que em 1975 fundou o Cinema Quarteto ("4 salas/4 filmes"), o primeiro multiplex português (e de Lisboa), era a última pessoa a querer que o evocassem com ar sério, voz embargada e lágrimas a escorrer pela cara abaixo. Por isso, começo por o recordar com uma história das dele.

Quando, pouco depois do 25 de Abril, se estreou em Portugal A Religiosa, de Jacques Rivette, foi o Quarteto que recebeu o filme "maldito" (esteve um tempão em cartaz). Calhou o próprio Rivette vir a Portugal e Bandeira Freire acolheu-o cortesmente no cinema. Mas o cineasta francês lá viu (ou julgou ver) qualquer coisa mal na projecção, e começou a moer o juízo a Bandeira Freire, que não conseguia divisar nada de errado na forma como o filme estava a ser mostrado. Até que, perdendo a paciência, virou-se para Rivette, apontou-lhe a porta do cinema gritando "Dehors! Dehors!" ("Rua!Rua!"), e conduziu-o para fora do edifício, meio empurrado, meio arrastado. Quando alguém lhe disse, "Ó Pedro, mas tu puseste o Rivette na rua? Estás maluco?", Bandeira Freire respondeu: "Pois pus! Ele é o Rivette, mas o cinema é meu!".

Numa das orelhas do seu livro de memórias Entrefitas e Entretelas (ver caixa), o também poeta, autor de teatro, rádio, televisão e de livros de máximas, argumentista, realizador (de duas curtas metragens), actor, letrista de canções, fundador da Livraria Opinião, jurado de festivais de cinema, grande amante de cinema e bon vivant consumado, deixou a biografia feita de forma tão completa e concisa, que é impossível não nos auxiliarmos das suas próprias palavras.



Nascido em 1939, antes da II Guerra Mundial, Pedro Bandeira Freire era, por isso, "material robusto e do melhor". Após quase ter terminado "com esforço e tenacidade" o Colégio Miitar (era o "57"), licenciou-se em "Gestão de Sentimentos", com "Mestrado de Relações Públicas" e doutoramento "em Filosofia de Vida. Não tendo habilitações para fazer alguma coisa de útil (o mesmo é dizer que não sabia nada de nada), dedicou-se a fazer um pouco de tudo. Uma das suas grandes qualidades - a preguiça!". Trabalhou em distribuidoras de filmes e na TAP, escreveu em jornais e revistas, fundou uma livraria e um cinema - o Quarteto, onde divulgou anos a fio o melhor do cinema mundial e foi, durante muito tempo, campeão absoluto da cinefilia e da cultura cinematográfica -, publicou livros, peças de teatro ("12 peças e meia, mais 4 do que o filme do Fellini", a Sociedade Portuguesa de Autores vai lançar uma inédita na sua colecção de teatro), e foi "amestrado, caricaturado amado e odiado, representado, jurado, letrista, premiado, censurado, enganado e fez os possíveis, embora sem obter resultados, para ser feliz". E gozou muito, sempre, imensamente, a vida, tanto como os filmes.



Há cerca de um mês, em plena "crise de consumismo e de cinefilia", Pedro Bandeira Freire entregou as chaves do Quarteto, após as quatro salas da Rua Flores do Lima terem sido fechadas pela Inspecção-Geral das Actividades Culturais, por apresentarem falhas ao nível da segurança. (Espera-se que o Quarteto não tenha o triste destino de tantas outras salas de cinema de Lisboa, e que quem de direito faça o que é preciso, e se exige, para o manter aberto, a passar filmes e com público).



O corpo de Pedro Bandeira Freire está em câmara ardente na Galeria Carlos Paredes da Sociedade Portuguesa de Autores, de onde sairá amanhã, às 12.00, para o Cemitério dos Olivais. Vai custar mesmo muito não o voltar a encontrar e ouvir dizer: "Tás bom, ó doutor? Tens visto alguma coisa de jeito?".





Eurico de Barros



in DN

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