O meu umbigo agora enfrenta um puto com uma navalha. Atrás de mim, um afro de dois metros agarra-me o pescoço, puxando a camisa até um botão dar de si. Estou imobilizado, e eles berram à força toda, metendo as mãos nos bolsos onde eu já tenho as mãos, à procura de trocos para lhes dar. Sobram-me 5 euros para uma vida reles. “Não tenho documentos, fiquem lá com os 5 euros, esperem que eu tenho aqui mais trocos!”. Não tenho moedas, apenas as chaves de casa, que eles não querem, já ninguém quer casas em Lisboa. O telemóvel está nas mãos deles, com os meus contactos do mundo dos vivos, e a navalha continua em riste na mão direita do puto. Recordo o odor terrível a mijo, sarjeta e suor, a pele suja de noites de Inverno ao relento.
A violência anestesiante é interrompida por dois chico-espertos que saem da noite com copos na mão, devem ter ouvido um chinfrim invulgar na zona. “Embora atrás deles, corre, apanha o cabrão!”. Afinal, trata-se da cavalaria! Um carro-patrulha acompanha de imediato a situação e empurra os sócios à esquina. O afro bazou. O puto drogado é apanhado e faz-se de vítima, tipo insecto a fingir de morto. Parece desmaiar, arrependido, como se guardasse uma réstia de melancolia para aquele momento de expiação. “Eu não ia fazer nada, toma lá os 5 euros!”, responde intimidado pela desigualdade da situação. O telemóvel é-me generosamente devolvido, mas a cavalaria quer mais. “É só o telemóvel, eles não ficaram com mais nada?”. Procuro o carro-patrulha que entretanto já fechou o vidro e seguiu em direcção ao Cais do Sodré, sem levar prisioneiros.
Estou numa pilha de nervos, e só me resta uma vida a 5 euros. Procuro um táxi, sem sucesso, e meto-me a caminho, longe da coboiada, até à Rua do Arsenal. Dizem-me que a cidade não é segura à noite, mas é segura de dia? Seguro-me e sigo a pé. Debaixo dos andaimes de uma das lojas do Arsenal, o cheiro a bacalhau e urina confundem-se: volto a ser apanhado pelo puto da navalha! O ladrão regressou ao local do crime. Mas, desta vez, trata-se de um duelo. Estamos no escuro, sem afros ou carros-patrulha a registar ocorrências. “Passa-me o telemóvel ou levas com a navalha, cabrão!”. Eu riposto, é um contra um. “Meu grande idiota, então eu deixo-te ir em liberdade e tu fazes-me esta merda outra vez? O telemóvel não levas, também preciso dele para trabalhar”. Ele não se convence: “Dá-me o telemóvel ou levas com a navalha!”. E juntos nos agarramos ao braço um do outro, a bailar assim na noite escura. A navalha está na mão, depois deixa de estar, ficou no bolso, volta a aparecer. Grito: “Também sou da rua, também tenho de andar aqui todos os dias, preciso do telemóvel para trabalhar!”, até finalmente o rapaz cair, inapelável, no degrau da mercearia. “Eu não te queria matar, juro que não te ia matar”, levando as mãos à cabeça. “Esta merda das drogas dá cabo de um gajo!”. O duelo acabou, sento-me ao seu lado. “Eu também vivo nesta cidade, pá! Não ando por aí a matar as pessoas”. O puto mete dó. Devolvo-lhe os 5 euros. Caminhamos juntos até à Praça do Comércio, ele vai para Intendente, eu sigo para Santa Apolónia. Até à próxima.
Miguel Somsen
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